Friday, March 29, 2013

Daguerreótipo #18: a Semana Santa*

Palavra de honra, começo a me aperceber, tremendo, de que estou mesmo ficando velho. Não são apenas os pés mais pesados, quando o corpo está mais leve, não é somente a vista cansada, a reclamar hoje óculos e amanhã binóculos. É o espírito, saudoso, que já teima em olhar para trás. Sim, os espíritos também olham e olham muito. Como os tralhotos do padre Vieira, que têm olhos para o mar e para o céu, para os peixes e para as aves, eles devem ter também para este e para o outro mundo, para a vida e para a morte...
Mas é isto: há uma mudança nas coisas. Se não fui eu, foi a Semana Santa que mudou. Lembrei-me até do soneto famoso do outro Machado, o verdadeiro, o de Assis:
- "Mudaria o Natal ou mudei eu?"
O fato é que a Semana Santa, pelo menos a que trago na lembrança, era bastante diferente. Como? Mais bonito, mais emocionante, estive também para dizer mais séria, isto é, mais circunspecta. Ninguém falava na Igreja e a própria agonia do Cristo era mais longa e mais dolorosa. Homens, mulheres, velhos e crianças ouviam os sermões dos padres - comovedores sermões de lágrimas - com um ódio danado de Pilatos, esse pobre Procurador da Judéia que, segundo [o escritor francês] Anatole, fora lavar as mãos para tirar a poeira que havia nelas...
E como os dias e as noites eram inteiramente para desfiar rosários, chegava-se ao Sábado da Aleluia mortificado de rezas e jejuns... Oh, o Sábado da Aleluia! Ruidoso dia, cuja alvorada eram os gritos dos meninos apanhando pelas faltas cometidas durante a semana em que ninguém ousara castigá-los para não cair em pecado mortal. 
Os Judas, por sua vez, como não representavam o povo nas Assembléias, traindo os respectivos mandatos, ou mesmo sem os trair, eram muito mais generosos, contemplando em seus testamentos amigos e inimigos.
Nem por isso, coitados, deixavam de expiar na forca a sua falta, pois havia galhos de figueira de sobra, ou seja, havia mais postes que Judas. Agora não, há mais Judas do que postes. Até nem há postes, só há postes para os Judas...
Semana Santa... Rezas... Judas... O tempo muda muito e nisto estou com o mestre Calino, cujas máximas, como vêem, são assim tão simples e profundas...

* COÊLHO, Inocêncio Machado. Sapos e Estrelas. Belém: Fundação Minerva, 2005, p. 37.

Inocêncio Machado Coelho nasceu em Belém a 17 de maio de 1909. Depois de fazer seus primeiros estudos na cidade de Bragança, onde seu pai, fiscal dos Correios e Telégrafos, residiu durante alguns anos, retornou a Belém, onde estudou no conceituado Lyceu Paraense, hoje a Escola Estadual Paes de Caravalho. A morte prematura do pai, contudo, o alçou à condição de arrimo de família, o que o impediu de continuar seus estudos de forma sistemática, tornando-se assim um autodidata. Iniciou sua carreira literária trabalhando como jornalista no Estado do Pará, na Folha do Norte e em A Província do Pará, no qual manteve, entre os anos de 1952 e 1953, uma coluna semanal chamada "Sapos e Estrelas", onde a crônica aqui reproduzida foi originalmente publicada. Marcadas por uma "heterogeneidade temática" e por um estilo descontraído, em 2005 elas foram reunidas em um volume lançado por sua família. Exerceu ainda diversos cargos públicos de relevo como, por exemplo, diretor do Museu Paranse Emilio Goeldi na década de 1940. Foi membro da Academia Paraense de Letras, do Conselho Estadual de Cultura e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Publicou, entre outros trabalhos, "O feitiço na literatura, na arte e na vida" (1963). Inocêncio Machado Coelho morreu em Belém, no dia 23 de novembro de 2001. 

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