"Dentro do pano de fundo geral do futebol visto como acontecimento trágico, o goleiro simbolizava, para Nelson Rodrigues (1912-1980), o zelador ou guardião de um sumo bem alvo da cobiça alheia (o gol). Para dar conta de realizar essa tarefa da melhor maneira possível, precisava possuir qualidades sobre-humanas (clarividência, capacidade de voar, onisciência, etc.). Porém, havia momentos em que tais qualidades, por si só, não bastavam. Nessas horas, alguns deles agraciadamente recebiam a ajuda de entidades ou dádivas celestiais (...) que passavam a guiar suas atitudes tal qual um marionete. Mesmo assim, em certas ocasiões a falha aparecia, muitas vezes trazendo consigo uma sensação inesperada de surpresa e impotência (o inesquecível caso de Barbosa).
Além dessa, as colocações do jornalista permitem-nos ventilar um outro aspecto concernente ao goleiro, mais sutil e menos óbvio. Na medida em que concebia esse esporte como uma representação mimética dos misteriosos contornos assumidos pela vida humana para os quais não há explicações lógicas (daí, a idéia de atribuí-los a obscura vontade de deuses), o perfil das situações protagonizadas pelo goleiro nas suas peculiares descrições retratam os estados mais intensos de incerteza a que o homem pode chegar quanto ao seu destino imediato. Em outras palavras, o agir do goleiro, com todos os seus requintes, encarna os paroxismos a que a imprevisibilidade inerente a toda existência humana consegue atingir, bem como os desdobramentos ímpares que ela abriga. Por conseguinte, quando ele é chamado a intervir, cessa a propensão para a rotina, porque a iminente quebra de continuidade no curso dos eventos sempre estará em vias de acontecer.
Assim, ao canalizar para si as atenções e expectativas tanto de espectadores como companheiros e adversários por causa dessa singularidade, sem, todavia, permitir-lhes fazer nenhuma inferência segura sobre o que sucederá logo nos instantes ulteriores à sua participação, o goleiro contribui para instigar em cada um deles a visceral sensação de estarem vivos. Os escritos do jornalista testemunhavam nas suas entrelinhas esse singelo fato, o de que a certeza e de se experimentar vivo esbarra do acolhimento da vida como fonte de incertezas, cabendo ao goleiro, no contexto maior do palco do futebol, dar corpo a essa verdade".
* In: GAMA, Dirceu Ribeiro Nogueira da. A tragédia futebolística e o papel do goleiro enquanto protagonista principal: revendo as crônicas de Nelson Rodrigues. In: http://www.efdeportes.com/efd159/revendo-as-cronicas-de-nelson-rodrigues.htm. Acesso em: 06 de janeiro de 2012.

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