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| Gravura mostrando a população da cidade irlandesa de Cork vendo a passagem do cometa Halley em 1835. |
Por que me chamas de Eiros?
CHARMION
Assim, de agora em diante, sempre será o teu nome. Deves esquecer também meu nome terreno e chamar-me de Charmion.
EIROS
Isto de fato não é sonho.
CHARMION
Sonhos não mais nos acompanham - mas deixemos tais mistérios para hora oportuna. Regojizo-me em te ver numa aparência vívida e racional. A membrana da sombra já não te cobre mais os olhos. Trata de ter ânimo, e não temas nada. Os dias de estupor que te couberam estão expirados; e amanhã vou eu pessoalmente introduzir-te na plenitude de êxtases e maravilhas de tua nova existência.
EIROS
É verdade, não sinto estupor nenhum - nada em absoluto. A furiosa náusea e a terrível escuridão não estão mais em mim, e não mais ouço aquele som louco, impetuoso, horrível, como "a voz de muitas águas". Todavia meus sentidos estão desnorteados, Charmion, pela agudeza com que captam o novo.
CHARMION
Uns poucos dias eliminarão tudo isso - mas entendo-te completamente, e sinto por ti. Passaram-se já dez anos terrenos desde que sofri o que tu sofreste - e no entanto a recordação do suplício está sempre comigo. Entretanto, já experimentaste toda a dor que vais experimentar em Aidenn.
EIROS
Em Aidenn?
CHARMION
Em Aidenn.
EIROS
Oh, Deus! Tem piedade de mim, Charmion! Soterra-me o peso da majestade de todas as coisas, do desconhecido agora conhecido - do especulativo Futuro imergido no augusto e incontestável Presente.
CHARMION
Não te agarres a tais pensamentos. Amanhã falaremos sobre isso. Tua mente vacila para um lado e para o outro, e essa agitação encontrará alívio no exercício de simples memórias. Não olhes em volta, nem para a frente - olha para trás. Estou ardendo na ansiedade de ouvir como se deram os detalhes desse estupendo evento que te arremessou até nós. Conta-me como foi. Conversemos de coisas familiares, na velha linguagem familiar desse mundo que pereceu de maneira tão medonha.
EIROS
Sim, da maneira mais medonha! Isso de fato não é sonho.
CHARMION
Sonhos não há mais. Prantearam-me muito, Eiros?
EIROS
Se te prantearam, Charmion? Ah, profundamente. Até a última de todas as horas, uma nuvem de imensa treva e de devotado pesar pairou sobre a tua casa.
CHARMION
E aquela última hora - fala sobre ela. Lembra que eu, além de fato evidente da catástrofe, de nada sei. Quando, ao sair de meu convívio com a humanidade, penetrei na noite através da cova, nessa época, se bem me lembro, a calamidade que te esmagou era algo totalmente imprevisto. Mas, de fato, eu conhecia pouco a filosofia especulativa de então.
EIROS
Esta particular calamidade era, como tu dizes, algo completamente imprevisto; mas infortúnios análogos já desde muito eram assunto de discussão entre astrônomos. É quase desnecessário te contar, Charmion, que, mesmo quando tu nos deixaste, os homens já estavam de acordo no entendimento de que, naquelas passagens das sagradas escrituras que falam de destruição final de todas as coisas pelo fogo, a destruição refere-se ao orbe terrestre apenas. No que concerne ao agente imediato da ruína, porém, as especulações viam-se em dilema desde a época em que, no conhecimento astronômico, os cometas foram despojados dos terrores das chamas. A densidade bastante moderada de seus corpos havia sido bem estabelecida. Eles foram observados passando entre satélites de Júpiter, e não causaram nenhuma alteração sensível nem nas massas, nem nas órbitas desses planetas secundários. Por muito tempo vimos os corpos errantes como entidades vagarosas de inconcebível tenuidade, e os consideramos absolutamente incapazes de causar dano ao nosso gigantesco globo, mesmo na ocorrência de contato. Mas um contato não era algo temido; pois os elementos de todos os cometas eram conhecidos com acurácia. Que entre eles deveríamos procurar pelo agente da ameaça de destruição pelo fogo era idéia considerada inadmissível desde muitos anos. Mas divagações e loucas fantasias haviam, nos últimos tempos, alastrado-se estranhamente entre a humanidade; e, embora tenha sido apenas em alguns dos ignorantes que a apreensão real prevaleceu quando do anúncio por astrônomos de um novo cometa, tal anúncio, no entanto, foi recebido como não sei que sentimento de agitação e de desconfiança.
Os elementos do estranho orbe foram imediatamente calculados, e foi reconhecido de imediato por todos os observadores que seu caminho o traria, no periélio, a uma proximidade muito acentuada com a Terra. Houve dois ou três astrônomos, de reputação inferior, que garantiram resolutos que um contato era inevitável. Eu não conseguiria exprimir bem para ti o efeito que essa informação teve sobre o povo. Por alguns dias as pessoas não quiseram acreditar numa asserção que seus intelectos, por tanto tempo dedicados a considerações mundanas, não podiam de modo algum apreender. Mas a verdade de um fato de importância vital logo abre caminho para o entendimento, mesmo entre os mais parvos. Por fim, todos os homens viram que a ciência astronômica não mentia e aguardaram o cometa. Sua aproximação não foi, de início, aparentemente rápida; nem seu surgimento teve alguma característica muito incomum. Ele era de um vermelho opaco, e tinha a cauda pouco perceptível. Por sete ou oito dias não vimos aumento material em seu diâmetro aparente, e só houve uma alteração parcial de sua cor. Enquanto isso, os afazeres cotidianos dos homens estavam descartados, e todos os interesses foram absorvidos por uma discussão crescente, instituída pelos filósofos, a respeito da natureza do cometa. Mesmo os mais ignorantes elevaram suas aptidões letárgicas a tais considerações. Os instruídos, agora, não direcionavam seus intelectos, suas almas, a tópicos como a acentuação do medo, ou como a sustentação de teorias apreciadas. Eles buscavam - anelavam por visões corretas. Suspiravam pelo conhecimento aperfeiçoado. A verdade surgiu em toda a pureza de sua força e em sua extrema majestade, e os sábios se curvaram e a adoraram.
Que algum dano material a nosso globo ou a seus habitantes resultaria do contato previsto era uma idéia que perdia terreno de hora em hora entre os sábios; e os sábios agora tinham livre permissão para reger a razão e as fantasias da multidão. Foi demonstrado que a densidade do núcleo do cometa era muito menor do que a do mais rarefeito gás; e a passagem inofensiva de um visitante similar pelos satélites de Júpiter foi um ponto no qual se insistiu e que serviu sobremodo para mitigar o terror. Teólogos, com uma gravidade inflamada pelo medo, insistiam nas profecias bíblicas e expunham-nas ao povo com uma simplicidade sem evasivas nunca antes vista. Que a destruição final da Terra devia ser acarretada pela ação do fogo era algo instado com um vigor que inculcava convição em todos os lugares; e que os cometas não era de natureza ígnea (como sabiam agora todos os homens) era uma verdade que aliviava a todos, em grande medida, da apreensão pela grande calamidade pronunciada. É digno de nota que os preconceitos populares e os erros vulgares quanto a pestilências e guerras - erros que costumavam entrar em voga a cada aparição de um cometa - agora simplesmente não apareciam mais. Como que graças a um empenho súbito e convulsivo, a razão havia arrancado a superstição de seu trono de um só golpe. O intelecto mais débil ganhara vigor através do interesse febril.
Males menores que pudessem resultar do contato eram pontos de questionamento elaborado. Os conhecedores falavam de leves distúrbios geológicos, de alterações prováveis do clima e, por conseguinte, na vegetação; de possíveis influências magnéticas e elétricas. Muitos sustentavam que nenhum efeito visível ou perceptível seria produzido. Enquanto tais discussões se desenrolavam, o objeto delas se aproximava, ficando maior em diâmetro e adquirindo um brilho mais resplandecente. A humanidade empalidecera diante da chegada do cometa. Todas as operações humanas estavam suspensas.
Houve um período, no decorrer geral das opiniões, em que o orbe atingira, afinal, um tamanho que ultrapassava os de todas as vistas previamente registradas. Abandonando qualquer resquício de esperança de que os astrônomos estivessem errados, o povo agora experimentava por inteiro a certeza do mal. A faceta quimérica do terror se fora. Os corações dos mais valentes de nossa raça pulsavam violentamente em seus peitos. Pouquíssimos dias bastaram, entretanto, para fundir até mesmo sentimentos como esses em impressões mais intoleráveis. Não mais podíamos dedicar ao estranho orbe qualquer consideração habitual. Seus atributos históricos haviam desaparecido. Ela nos oprimia como uma horrenda novidade de emoções. Víamos o cometa não como um fenômeno astronômicos nos céus, mas como um incubo em nossos corações, e como uma sombra em nossos cérebros. Ele assumira, com rapidez inconcebível, o aspecto de um gigantesco manto de chama rarefeita, estendendo-se de horizonte a horizonte.
Mais um dia e os homens respiraram com mais liberdade. Estava claro que já nos encontrávamos sob a influência do cometa; no entanto, estávamos vivos. Sentimos até mesmo uma incomum elasticidade de corpo, uma vivacidade na menta. A extrema tenuidade do objeto de nosso pavor era visível, pois todos os objetos celestes eram plenamente perceptíveis através deles. Enquanto isso, nossa vegetação se alterara de modo evidente; e reforçamos nossa fé, a partir dessa circunstância vaticinada, na previsão dos sábios. Uma selvagem exuberância de folhagem, jamais testemunhada antes, rebentava em todas as coisas vegetais.
Mais outro dia - e o mal não estava de todo em cima de nós. Era evidente agora que o núcleo do cometa nos alcançaria primeiro. Uma violenta mudança recaíra sobre todos os homens; e a primeira sensação de dor foi o violento sinal para a lamentação geral e para o horror. Essa primeira sensação de dor consistia numa rigorosa contração do peito e dos pulmões e numa insuportável secura de pele. Não havia como negar que nossa atmosfera fora radicalmente afetada; a conformação da atmosfera e as possíveis modificações às quais ela podia estar sujeita eram agora os tópicos de discussão. O resultado da investigação transmitiu um estremecimento elétrico, de terror mais intenso, ao coração universal do homem.
Há muito se sabia que o ar que nos circundava era um composto de gases de oxigênio e nitrogênio, na proporção de 21 medidas de oxigênio e 79 de nitrogênio a cada cem, na atmosfera. O oxigênio, que era o fundamento da combustão e o condutor de calor, era absolutamente necessário à manutença da vida animal e era o agente mais poderoso e energético da natureza. O nitrogênio, ao contrário, não era capaz de manter nem vida nem chama. Um excesso antinatural de oxigênio resultaria, havia sidoa veriguado, em uma elevação da vivacidade animal tal qual a que experimentáramos recentemente. Foi a procura, a extensão da idéia, o que causou espanto. Qual seria a resultado de uma extração total de nitrogênio? Uma combustão irresistível, ultradevoradora, onipresente, imediata - o cumprimento por inteiro, em todos os seus detalhes miúdos e terríveis, das ameaças flamejantes e aterrorizantes do Livro Sagrado.
De que serve que eu pinte, Charmion, o frenesi que se desencadeou então na humanidade? A tenuidade no cometa, que antes nos inspirara esperança, era agora a fonte de amargura do desespero. Em seu impalpável caráter gasoso percebíamos claramente a consumação do Destino. Enquanto isso mais um dia se passou - levando consigo a última sombra de Esperança. Ofegávamos na rápida modificação do ar. O sangue vermelho ricocheteava tumultuoso em seus canais sufocados. Um delírio furioso se apossou de todos os homens; e, de braços rigidamente esticados em direção aos céus ameaçadores, eles tremiam e gritavam. Mas o núcleo do destruidor estava agora sobre nós - mesmo aqui em Aidenn, falo e me arrepio. Serei breve - breve como a ruína que tomou conta de tudo. Por um momento houve apenas uma luz lúgubre e fortíssima, tocando a penetrando todas as coisas. Então - curvemo-nos, Charmion, perante a majestada excessiva do grade Deus! -, então ouviu-se um som invasivo e gritado, como que saído da boca Dele; e toda a massa incumbente de éter em que existíamos explodiu de uma só vez numa espécie de chama intensa, dotada de uma radiância insuperável e de um calor ultrafervido que nem mesmo os anjos, no alto do Céu do puro conhecimento, sabem como nomear. Assim acabou tudo.
* In: POE, Edgar Allan. O Escaravelho de Ouro e outras histórias. Porto Alegre: LP&M, 2011, pp. 42-49.
O jornalista, críttico e contista norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) é reconhecidamente um dos maiores nomes da literatura mundial, principalmente por ser considerado o criador do gênero de mistério e terror. Tendo como marca registrada temas macabros e a atmosfera claustrofófica, Poe criou histórias emblemáticas como "O Coração Denunciador" (Tell Tale Heart, 1843), "O Gato Preto" (The Black Cat, 1843), "A Máscara da Morte Rubra" (The Mask of the Red Death, 1842) e aquela que é considerada sua obra prima, o poema "O Corvo" (The Raven, 1845). Ele também é apontado como o criador do romance policial moderno com a publicação, em abril de 1841, do conto “Assassinatos na Rua Morgue” (The Murders in the Rue Morgue).
Em "A Conversação de Eiros e Charmion" (The Conversation Between of Eiros and Charmion, 1839), Poe reproduz o diálogo entre dois seres celestiais que vivenciaram um hipotético final da existência terrestre. O conto é sem dúvida um reflexo das visões apocalípticas que se tornaram quase uma obssessão nos Estados Unidos quando, em 1835, ocorreu a passagem do cometa Halley, uma vez que esses astros estão desde tempos muito remotos associados a maus presságios e a tragédias.
O diálogo entre Eiros e Charmion - cujos nomes parecem terem sido inspirados em Iras e Charmian, personagens de "Antônio e Cleópatra", de William Shakespeare - ocorre em Aidenn (Éden?) logo depois do fim do mundo. Charmion, vivendo em Aidenn há cerca de dez anos, ajuda o recém-chegado Eiros a se adaptar aquela nova existência. O relato de Eiros sobre o fim do mundo através da colisão com um cometa revela, segundo alguns críticos, a idéia de que a sobrevivência da alma não depende da moral, bondade e bom comportamento que se tenha tido durante a vida terrena e sim da capacidade de produzir pensamentos puros. Os últimos momentos da humanidade mostram-na vivendo uma combinação de astronomia, filosofia, religião, química e comportamento, o que deu uma falsa sensação de segurança diante da ameaça. Quando a realidade finalmente se impõe, que se viu foi desespero diante iminente destruição.


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