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| Benedito Calixto. Proclamação da República. 1893, óleo sobre tela, Pinacoteca Municipal de São Paulo |
Não decorrera ainda um mês da proclamação da República quando o encarregado de negócios da Fança no Rio de Janeiro, Camille Blondel, anotava a tentativa dos vencedores de 15 de novembro de construir uma versão oficial dos fatos destinada à história. Tentava-se, segundo Blondel, ampliar ao máximo o papel dos atores principais e reduzir ao mínimo a parte do acaso nos acontecimentos. O encarregado percebera um fenômeno comum aos grandes eventos: a batalha pela construção de uma versão oficial dos fatos, a luta pelo estabelecimento do mito de origem. No caso da República, a batalha era tão importante, se não mais que a própria proclamação, um evento inesperado, rápido, incruento. Estavam em jogo a definição dos papéis de vários atores, os títulos de propriedade que cada um julgava ter sobre o novo regime, a prórpria natureza do regime.
O fato de ter sido a proclamação um fenômeno militar, em boa parte desvinculado do movimento republicano civil, significa que seu estudo não pode, por si só, explicar a natureza do novo regime. O advento da República não pode ser reduzido à questão militar e à inssurreição das unidades aquarteladas em São Cristóvão. De outro lado, seria incorreto desprezar os acontecimentos de 15 de novembro como se fossem simples acidente. Embora as raízes da República devam ser buscadas mais longe e mais fundo, o ato de sua instauração possui valor simbólico inegável. Não foi por outra razão que tanto se lutou por sua definição histórica. Deodoro, Banjamin Constant, Quintino Bocaiúva, Floriano Peixoto: não há inocência na briga pela delimitação do papel de cada uma dessas personagens. Por trás da luta, há disputa de poder e há visões distintas sobre a natureza da República.
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| Henrique Bernardelli. A Proclamação da República. c. 1900, óleo sobre tela, Museu da República, Rio de Janeiro. |
AS PROCLAMAÇÕES
Não pretendo reconstituir as diferentes versões dadas pelos participantes do 15 de novembro. Basta observar que por muito tempo digladiaram-se partidários de Deodoro, Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva, Floriano Peixoto. A disputa tomava às vezes caráter apaixonado e girava em torno de pontos aparentemente irrelevantes. Tome-se como exemplo o que se poderia chamar de guerra dos vivas. Quem deu vivas a quem, ou a quê, em que momento? As versões são desencontradas. Deodoro teria dado um viva ao imperador ao entrar no Quartel-General? Ao sair do Quartel? Benjamin Constant deu vivas à República para abafar o viva ao imperador dado por Deodoro? Teria este censurado os vivas à República dizendo que ainda era cedo ou que fossem deixados ao povo? O que significa o famoso óleo de H. Bernardelli [acima], transformado em versão oficial e sagrada no momento da proclamação? Deodoro, que posou para o quadro, estaria naquele momento (saída do Quartel-General, após a deposição do ministério) dando vivas ao imperador ou à República? Estaria, sem vivas, mandando dar uma salva de 21 tiros pelo êxito da depoisção do ministério ou pelo êxito da proclamação? Houve, afinal, algum momento no dia 15 em que Deodoro tenha procalmado a República?
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| Benjamin Constant (1833-1891) |
Se a guerra dos vivas tem a ver com a participação de Deodoro, outras disputas dizem respeito à participação de Benjamin Constant. Todos estão de acordo em reconhecer sua influência sobras as escolas militares (a da Praia Vermelha e a Escola Superior de Guerra, criada em 1889, sediada em São Cristóvão). Não há, também, dúvidas sobre suas convicções republicanas, mas existem sérias discordâncias quanto à importância de sua atuação a 15 de novembro. Seus seguidores insistem em lhe dar o papel de fundador da Rpública, de responsável pela ação dos militares; teria sido ele quem fornecera os fundamentos ideológicos, quem convencera a Deodoro e evitara que o episódio não passasse de uma quartelada. Os deodoristas retrucam dizendo que o próprio Benjamin reconhecia que sem Deodoro nada poderia ter sido feito, pois só o velho general teria condições de galvanizar a tropa pela liderança que sobre ela exercia. Benjamin, nessa versão, não passava de um professor desconhecido de boa parte da tropa aquartelada. Os republicanos históricos, especialmente Quintino Bocaiúva, chefe do Partido Republicano Brasileiro, e Francisco Glicério, representante dos republicanos paulistas, repisam as hesitações de Benjamin tanto na véspera da proclamação como no prórpio dia 15. Segundo seu depoimento, Banjamin hesitou até o final da tarde daquele dia. Os históricos tentam preservar a figura de Deodoro, ao mesmo tempo que enfatizam o próprio papel diante da reconhecida falta de convicção republicana do marechal e as dúvidas de Benjamin.
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| Floriano Peixoto (1839-1895) |
Por fim, após a subida de Floriano ao governo, não faltaram os que atribuíssem à sua atuação o papel central no dia 15. [O paraense] Serzedelo Correia é o principal defensor dessa posição. A dubiedade de Floriano, apontada por muitos, ou mesmo sua hostilidade ao movimento, denunciada por deodoristas, são transformadas por Serzedelo em astúcia destinada a facilitar o êxito da revolta. A ele se deveria o fato de ter sido proclamada a República de maneira tão tranquila, sem derramamento de sangue. Ele teria sido mesmo um republicano de longa data.
Deodoro, Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva, Floriano Peixoto: a briga persistiu por longo tempo e pode ser seguida nos artigos e editoriais de O Paiz, o jornal de Quintino Bocaiúva, porta-voz do oficialismo republicano. A dança dos adjetivos, definidores do papel de cada um desses homens, prossegue até os dias de hoje. A luta maior é pela qualificação de fundador, disputada pelos partidários de Deodoro e Benjamin Constant. Quintino raramente é fundador; com frequência aparece como patriarca ou apóstolo. Em torno de Floriano há mais consenso, pois veio depois: ele será o consolidador, o salvador da República. Os que tiram de Deodoro a qualidade de fundador lhe dão, em compensação, o título de proclamador. A distribuição de papéis é comentada com humor por "Gravoche" (pseudônimo de Arthur Azevedo), em O Paiz de 19/11/1895:
Retratos
O Nicromante, pelos modos,
Satisfazer procura a todos:
Traz Benjamin, que é o fundador,
Deodoro que é o proclamador;
Floriano, o consolidador,
Prudente, o pacificador!
Isto é que é ser engrossador!
Picuinhas, anedotário, fofocas, petite histoire, simples disputa de poder entre os participantes dos acontecimentos? Se assim fosse, a disputa não teria sobrevivido aos atores envolvidos. Na luta pelo estabelecimento de uma versão oficial para o 15 de novembro, pela constituição de um panteão republicano, assim como se deu e geralmente se dá em todos os momentos de transformação política, estava embutido o conflito pela definição do novo regime. Inicialmente apenas verbal, o conflito foi aos poucos sendo explicitado em lutas políticas que seria talvez prematuro considerar extintas cem anos após o acontecimento. A análise da luta pelo mito fundador pode servir para esclarecer a natureza desse conflito.
* CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 35-38.
José Murilo de Carvalho nasceu a 8 de setembro de 1939 na cidade de Piedade do Rio Grande, em Minas Gerais. Formou-se em bacharel em Sociologia e Política pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1965, fazendo suas pós-graduações (especialização, mestrado e doutorado) em instituições norte-americanas e inglesas. Dono de uma grande produção bibliográfica, José Murilo de Carvalho se destacou por buscar "interpretar a dinâmica conflituosa do imaginário político-social lançando mão, além das fontes tradicionais, de um vasto material cultural, como imagens plásticas, música, literatura e charges". Como historiador, entre suas obras mais importantes talvez A Formação das Almas (1990), onde se propõs "discutir mais a fundo o conteúdo de alguns dos principais símbolos utilizados pelos republicanos brasileiros e, na medida do possível, avaliar sua aceitação ou não pelo público a que se destinava, isto é, sua eficácia em promover a legitimação do novo regime" (p. 13), ou seja, o processo de formação dos símbolos republicanos, entre eles os seus heróis.
José Murilo de Carvalho nasceu a 8 de setembro de 1939 na cidade de Piedade do Rio Grande, em Minas Gerais. Formou-se em bacharel em Sociologia e Política pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1965, fazendo suas pós-graduações (especialização, mestrado e doutorado) em instituições norte-americanas e inglesas. Dono de uma grande produção bibliográfica, José Murilo de Carvalho se destacou por buscar "interpretar a dinâmica conflituosa do imaginário político-social lançando mão, além das fontes tradicionais, de um vasto material cultural, como imagens plásticas, música, literatura e charges". Como historiador, entre suas obras mais importantes talvez A Formação das Almas (1990), onde se propõs "discutir mais a fundo o conteúdo de alguns dos principais símbolos utilizados pelos republicanos brasileiros e, na medida do possível, avaliar sua aceitação ou não pelo público a que se destinava, isto é, sua eficácia em promover a legitimação do novo regime" (p. 13), ou seja, o processo de formação dos símbolos republicanos, entre eles os seus heróis.





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