Até princípios do século XIX, não existia em Belém, um cemitério público.
É o que se depreende da Carta Régia datada de 14 de janeiro de 1801, autorizando D. Francisco de Sousa Coutinho, governador do Pará e Rio Negro, a construir um ou mais cemitérios - "onde hajão de ser sepultados, sem excepção, tôdas as Pessoas que falecerem".
Contudo, a determinação real não foi cumprida. Os nobres da terra continuaram a ser enterrados, nas igrejas, onde ainda existem lapides indicativas, enquanto os escravos, os condenados à morte, os acatólicos e os excomungados, no dizer dos cronistas coevos, eram sepultados numa pequena área do largo da Pólvora [atual Praça da República], entre as ruas "São Vicente de Fora" e "Cruz das Almas", denominadas hoje avenidas Serzedelo Corrêa e rua Arcipreste Manuel Teodoro.
Nesse antigo trecho [do bairro] da Campina funcionou por algum tempo o "Circo Providência", sendo depois aproveitado para a construção do edifício onde esteve instalado o jornal "A PROVÍNCIA DO PARÁ", de propriedade do famoso político Antônio José de Lemos. Incendiado mais tarde, em consequência de um motim popular, foi reconstruído, servindo atualmente de sede do Instituto Paraense de Educação e Academia Paraense de Letras.
| Aspecto da capela do Cemitério da Soledade, em fotografia de Augusto Fidanza, c. 1890. Acervo Biblioteca Nacional. |
Depois desse cemitério, sujeito à toda sorte de profanação, tal o abandono em que vivia, existiu um outro, nas mesmas condições do primeiro, sem cercado e sem capela, chamado "Cemitério Municipal", encravado na rua de São Vicente de Fora, entre as estradas da Constituição e da Vala, chamadas hoje de Gentil Bittencourt e Conselheiro Furtado, fazendo fundo com a travessa "Chafariz do Bispo", atual Dr. Morais. Fora este esteve na cogitação da Câmara, a abertura de outro na estrada de São José, nas proximidades do Convento, onde hoje é o Presídio. Depois de construído o muro, foi o terreno julgado impróprio, e abandonado logo depois.
No ano de 1850, chegavam ao porto de Belém, com procedência de Recife, a barca dinamarquesa "Pollux" e a charrua brasileira "Pernambucana", trazendo a bordo doentes atacados de febre amarela. Rapidamente o mal alastrou-se. Apesar das providências sanitárias tomadas pelo governo, 12.000 pessoas foram atacadas pela peste. Este número representava, na época, um terço da população da capital. Todos os recursos foram mobilizados, não só para debelar o fragelo, como para socorrer os doentes. Cenas impressionantes ocorreram nesse período calamitoso.
O presidente da Província, conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, numa das páginas do seu Relatório, datado de 15 de agosto daquele ano, escreveu a propósito, as seguintes linhas:
"Muitos actos de caridade e de devoção entre si praticaram durante a crise os habitantes desta capital. A muitos indivíduos, a longo tempo inimizados, a compaixão e a piedade fez apagar em seus peitos os sentimentos de ódio, esqueceram antigas ofensas, e se congraçaram no leito da dôr; e tudo faz honra a seus sentimentos de philantropia, humanidade e cavalheirismo".
Em pouco menos de seis meses, a febre amarela devastou 506 vidas.
O problema do cemitério público que de há muito vinha agitando os círculos social e administrativo teve, em consequência, solucção imediata. O presidente Jerônimo Coelho ao mesmo tempo que proibia de maneira categórica, os enterramentos nas igrejas, mandava cercar e destocar o terreno do antigo "Cemitério Municipal" à rua São Vicente de Fora, que consistia, segundo as expressões do próprio conselheiro, "apenas no terreno desprezado, aberto e expôsto às profanações, onde somente se sepultavam os escravos, e algum miserável ou desvalido". Cercado o terreno e construída uma capela com a evocação de "Nossa Senhora da Soledade", o governo promoveu a inauguração do cemiério a 8 de janeiro de 1850. A benção da capela, que ainda hoje subsiste, foi dada solenemente no domingo, dia 7 de julho seguinte, pelo vigário da Freguesia da Trindade, padre Manoel Vasques da Cunha Pinto. O encarregado da construção foi o capitão Joaquim Vitorino de Sousa Cabral, cujos restos mortais repousam em artístico mausoléu ereto na área do Senhor Santo Cristo, a cuja Ordem pertencia. Data dessa época, o ofício que o presidente Jerônimo Coelho endereçou à Câmara, recomendando que não permitisse inscrições mortuárias ou epitáfios sobre as sepulturas, cujos "termos não fossem convenientes e próprios daquele estabelecimento religioso".
As obras de construção do cemitério de "Nossa Senhora da Soledade" foram orçadas em oito contos de réis, tendo o governo provincial dispendido apenas seiscentos mil réis, sendo o restante pago com donativos particulares.
O presidente Jerônimo Coelho encontrou, de início, forte oposição, não só do clero como de pessoas gradas da cidade que desejavam o restabelecimento do costume dos enterramentos nas igrejas. Eram invocados "os usos imemorais e praticas da veneranda antiguidade". Porém, a todas as reclamações fez-se surdo o conselheiro. A 25 de março de 1850, foi aprovado o Regulamento da Soledade, alterado pela Resolução n. 181 de 9 de dezembro do mesmo ano. Entre os dispositivos dessa Resolução figurava a obrigatoriedade do enterramento no cemitério, de todas as pessoas falecidas na cidade de Belém; mantida na cidade e proibição dos sepultamentos no interior das igrejas ou nos adros das mesmas, ou em cemitério a eles anexos. A infração era punida com a multa de quarenta mil réis e 30 dias de prisão.
| Álbum de Belém – Antônio Lemos. Paris: Philippe Renouard, 1902. |
Às irmandades, corporações de Ordens Terceiras e religiosas, ficava assegurado o direito de comprar separada ou associadamente o terreno preciso para o sepultamento de seus componentes.
Custava cinco mil réis por braça quadrada, o terreno adquirido pelas associações religiosas, Irmandades e Ordens, sendo obrigatória a construção da grade de madeira e ferro. O Regulamento frizava, porém, que a Irmandade Militar do Santo Cristo pagaria, somente dois mil réis por braça quadrada, "em atenção ao valioso serviço que tem prestado às praças de linhas para a construção do cemitério". Para que a Soledade ficasse isolada pelas quatro faces, a Câmara Municipal comprou de Martinho de Freitas Noronha, 6 braças de terreno que este possuía contíguo ao lado norte. Nos quatro ângulos do campo, foram demarcadas as áreas para as Irmandades da "Santa Casa", da "Ordem Terceira do Carmo", da Militar do "Santo Cristo" e da "Ordem Terceira de São Francisco da Penitência". Em dezembro de 1850, estando a província sob a administração do presidente Fausto Augusto d' Aguiar, passou a Soledade ao domínio da Santa Casa, com a obrigação desta pagar à Câmara de Belém, o fôro anual de 100 réis por braça de frente do terreno. O acabamento do cemitério ficaria por conta da Misericórdia, aplicado nas obras, o legado que lhe deixara o cidadão Vicente Antônio de Miranda, um dos benfeitores daquela instituição.
E assim foi feito.
* In: CRUZ, Ernesto. Procissão dos Séculos: vultos e episódios da história do Pará. Belém: Imprensa Oficial, 1952, pp. 177-179.
Ernesto Horácio da Cruz nasceu em Belém no dia 20 de novembro de 1898. Seu pai, José Antônio da Cruz, imigrou de Santana do Livramento (Rio Grande do Sul) ao Pará em busca das oportunidades surgidas com o chamado boom da borracha. José da Cruz participou ativamente da política local, na época dominada por Antônio Lemos e Lauro Sodré. Laurista convicto, José levava Ernesto ainda criança aos violentos comícios da época, quando freqüentemente se envolvia na pancadaria que marcava o final de cada um. Após concluir seus estudos, Ernesto ingressou na Escola de Agronomia do Pará para cursar Veterinária, curso que abandonou em 1922 a fim de se alistar no Exército. Servia no 26º Batalhão de Caçadores quando aderiu à Revolução de 1924. Com o fracasso do movimento foi preso, mas anistiado por Getúlio Vargas em 1930. Decidiu não retomar sua carreira militar a fim de se dedicar à sua grande paixão: a história do Pará, sobre a qual deixou uma importante produção historiográfica. Autodidata, Ernesto Cruz pautou sua obra por uma narrativa mais afastada da história política, destacando o pitoresco, o singular e o inusitado, seguindo desse modo um tipo de explicação histórica amparada na chamada história dos acontecimentos, essencialmente narrativa, marcada pelo ritmo da crônica. Permanecendo muitos anos como diretor do Arquivo Público do Pará, Ernesto Cruz pode pesquisar documentação variada, ora sobre o abastecimento de água e as ruas de Belém, ora sobre os solares e as casas governamentais, ora ainda sobre costumes, práticas sociais e sobre o cotidiano dos habitantes da cidade. Durante muitos anos manteve na imprensa a coluna Fatos e Curiosidades da História do Pará no jornal A Província do Pará. Foi presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e da Academia Paraense de Letras e membro do Conselho Estadual de Cultura. Ernesto Cruz faleceu em Belém no dia 16 de maio de 1976.
0 comments:
Post a Comment