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Vista de Belém em 1840 In: KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: províncias do Norte. Brasília: Senado Federal, 2008, pp. 224 |
"Celebrando-se a festa durante a nossa permanência na cidade, tivemos ocasião de assistir a tudo quanto nos aprouve. Já com alguma antecedência iniciaram-se grandes preparativos. O caminho que da cidade vai ter à igreja, atravessa uma floresta, durante quase todo o seu percurso, e por isso precisa ser anualmente capinado. A igreja está situada a um canto da praça e esta constitui o único pedaço de chão limpo em toda a redondeza. Da mesma forma que a estrada, torna-se preciso limpar de vez em quando o largo. Em geral, parte do mato é queimada. Em volta da clareira, constroem-se barracas para acomodar as famílias que desejam instalar-se no recinto, durante os festejos. Na primeira noite, uma longa procissão, transportando a imagem, movimentou-se da cidade em direção à capela situada em pleno mato.
À frente [da procissão] ia um corpo de guardas composto por militares e civis a cavalo; depois vinha um veículo a que chamavam de carro do triunfo, tirado por uma junta de bois e sobre a qual se via uma armação toda coberta de panos coloridos. No carro iam diversos rapazes incumbidos de queimar grande quantidade de foguetes.
Logo atrás vinha uma banda de música seguida de um piquete de cavalaria, de espadas desembainhadas. Imediatamente após marchava a guarda composta de civis a cavalo e oito ou dez carruagens que, provavelmente, eram todas quantas possuía a cidade. Finalmente vinha o presidente da província em grande uniforme e, depois dele, uma sege conduzindo o sacerdote que levava, ao colo, a imagem de Nossa Senhora. Esta não tinha mais do que sessente centímetros de altura e ia vestida com grande pompa. Diversas companhias de infantaria fechavam o cortejo que abria alas por entre a multidão de curiosos. Uma particularidade que observamos no povo, relativamente a outras aglomerações vistas pelo Brasil afora, foi o grande número de mulheres de todas as nuances, desde o negro até ao amarelo, trajadas com muito exagero e exibindo vasta profusão de jóias. Várias delas levavam sobre a cabeça bandejas repletas de brinquedos de açúcar e, nas mãos, banquinhos sobre os quais de vez em quando descansavam, para vender sua mercadoria.
O povo, em geral, se apresentava muito bem vestido e em muita ordem. Logo que a imagem chegou à igreja, começou a novena que continuou durante oito noites consecutivas. Esse era o principal exercício religioso de então. Abrilhantava as novenas uma banda de música, sempre precedida, como era de esperar, por um ensurdecedor espoucar de foguetes. Grande multidão reunia-se em torno da igreja, nessa ocasião, cantando a ladainha de Todos os Santos e da Virgem. Finda a reza o povo dispersava-se pelas adjacências, entregando-se a toda sorte de folguedos, tais como bailes, jogos, etc. Confrangeu-nos observar que de todos os divertimentos o que parecia despertar maior interesse era o jogo.
Nas esplêndidas noite enluaradas dos festejos, a cidade ficava quase inteiramente deserta, pois toda a população convergia para as festas de Nazaré. Entretanto, quão poucos dentre eles faziam idéia perfeita daquele que veio de Nazaré para remir os pecados do seu povo!
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"Capela de Nazaré, situada nas proximidades de Belém do Pará" In: WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 56. |
A igreja de Nazaré era muito pequena e dava a impressão de uma moradia comum, tendo em três de seus lados uma varanda em dois andares. Na parte superior penduravam-se as redes dos soldados da guarda. Defronte havia uma espécie de alpendre ou rancho coberto com telhas. Dentro da capela viam-se dois altares; aquele sobre o qual depunham a imagem transportada em procissão era desmesuradamente elevado. Parecia que a santa tinha vindo da França, pois o seu todo dava a impressão de uma grande boneca de vitrina. Duas longas fitas, uma verde, outra vermelha pendiam das vestes da imagem até o chão. Centenas de pessoas acotovelavem-se em torno do altar para, de joelhos, beijar essas fitas! Penduradas na parede, do lado oposto, viam-se numerosas peças de cera representando pés, mãos, cabeças e pernas doentes ou ulceradas, que foram miraculosamente curadas por Nossa Senhora. Em seguida podia-se também ver uma pintura tosca representando a aparição da Virgem a um doente que, naturalmente, se restabeleceu. Temendo, o modesto autor, em sua ingenuidade, que se não compreendesse o motivo do quadro lá estava claramente explicado numa legenda: 'Milagre que fez Nossa Senhora de Nazaré!'
Quão divina era a cena, pela manhã bem cedo. Não havia aglomeração. Aqui e acolá se via um ou outro indivíduo dormindo pelo chão; os outros descansavem em suas barracas fechadas. Nem a luz mortiça da lua, nem o tremeluzir das velas emprestavam qualquer nitidez aos mal definidos contornos das coisas. As ornamentações, tão profusamente dispersas, exibiam agora suas verdadeiras cores. Caindo em torno das barracas, outras vezes suspensos em longos mastros, viam-se grandes panos de musselina, tapeçaria e calicó, entremeados de bandeiras e flâmulas, mas tudo sem vida, escorrido, inerte, como que patenteando os resultados que se poderiam esperar de uma noitada alegre e profana. Notamos que nessas ocasiões a bandeira norte-americana parecia constituir a motivo ornamental predileto, pois um só estabelecimento desfraldava duas delas.
Parece desnecessário tecerem-se considerações de ordem geral sobre a natureza e a tendência dessas festividades que tanto atrativo tinham para toda uma comunidade e que se prolongavam por tantos dias consecutivos. Não tivessem elas cunho religioso e seriam menos chocantes. Mas é lamentável que um povo possa pensar que está servindo a Deus entregando-se a divertimentos e desatinos dessa ordem.
Entretanto, não se verificou a menor desordem durante os festejos. Mesmo assim, porém, teria alguém se tornado mais sensato, melhor ou mais feliz? Ao contrário, não seria difícil encontrar pessoas que tivesse resvalado pelo deboche, pela depravação; era penoso imaginar-se que muita gente poderia ter aí iniciado uma vida de jogatina, prostituição ou qualquer outro vício que lhe causaria completa ruína. Entretanto, apesar de serem possíveis e até prováveis tais resultados, durante todos esses dez dias não se pregou um único sermão, nem se fez coisa alguma no sentido de instruir e moralizar o povo".
* KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: províncias do Norte. Brasília: Senado Federal, 2008, pp. 226-228.
Daniel Parish Kidder (1815-1891) foi um missionário metodista norte-americano que, entre 1840 e 1842 esteve na Amazônia cumprindo uma árdua tarefa: divulgar e distribuir Bíblias. Sua atuação se insere no contexto das atividades de sociedades paraeclesiásticas que desde o início do século XIX já praticavam esse tipo de ação no Brasil, especialmente a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (BFBS) e a Sociedade Bíblica Americana (ABS). Segundo Gercymar Silva, "a atividade das sociedades bíblicas tinha um objetivo específico: introduzir a Bíblia no Brasil, já que o Brasil era considerado um país sem Bíblia. As sociedades bíblicas atuaram no interregno do advento do protestantismo imigratório e da chegada do protestantismo de missão, inaugurado a partir de 1835-36, pelos metodistas" (1).
Em 1820, uma dessas sociedades, a Sociedade Missionária, aprovou o envio de missionários para o Brasil que, contudo, só se concretizou dezessete anos depois com a vinda de Cyntia H. Russel e Daniel P. Kidder, que partiram de Boston em novembro de 1837 e chegaram ao Rio de Janeiro em 11 de janeiro de 1838. A partir daí Kidder viajou por quase todo o Brasil, divulgando e distribuindo Bíblias e folhetos de conteúdo religioso. Suas experiências são narradas na obra “Reminiscências de viagens e permanência no Brasil”, publicada nos Estados Unidos em 1840 e no Brasil em 1980. A narrativa de Kidder é considerada uma das mais precisas e valiosas sobre a incursão da primeira missão metodista no Brasil. Segundo Grecymar Silva, ela "é considerada um dos relatos mais íntegros sobre o campo religioso brasileiro, no começo do século XIX. (...) A fidelidade com que descreve suas observações é uma distinção de seu trabalho"(2). Aí com certeza se incluem as observações que fez sobre o Círio, onde Kidder criticou com grande tenacidade a linha tênue que separa o sagrado e o profano na festa de Nazaré.
Referências:
(1) SILVA, Gercymar Wellington Lima e. Raízes históricas do metodismo brasileiro. Primeira incursão missionária no Brasil. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/article/viewArticle/1204. Acesso em: 9 de outubro de 2012.
(2) Id. ib.



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