Escrever para mim é uma tortura. Não que eu não tenha nada a dizer. Como bom virginiano, tagarelar é comigo mesmo. Meu grilo é com as palavras. Não com o significado, mas com a grafia das malditas. Principalmente ao diferenciar "dois esses" do "cê-cedilha".
Essa minha deficiência vem desde quando usava calças curtas, as quais, diga-se de passagem, eu odiava. Meus joelhos eram horríveis.
Com calças curtas empaquei diante do portão da escola logo no primeiro dia de aula. Enfiei a cara entre as pernas de minha mãe e abri o maior berreiro. Não queria ser enclausurado ali. Achava que a escola era reformatório. Mesma assim, entrei. Que remédio? Mamãe mandou...
Minha primeira sala de aula era um barracão com duas portas. Uma de entrada, outra de saída. Por várias vezes tentei entrar por uma e sair pela outra. Nunca deu certo. A professora era mais rápida. Depois, no segundo ano primário, com o golpe militar, entrou para o indigesto cardápio escolar a aula de Educação Moral e Cívica. A molecada era obrigada a decorar hinos horrorosos, beijar bandeiras cheirando a naftalina e, uma vez ou outra, escrever na lousa o nome do general Castelo Branco. Chato mesmo era o 7 de Setembro. Ter de sair marchando em batalhões pelas ruas do bairro. Morria de vergonha. Me atrapalhava todo e acabava pisando no calcanhar do garoto da frente, arrancando-lhe o sapato. Queriam me transformar num "mussolinizinho". Conseguiram em parte.
No terceiro ano, num piscar de olhos, me transformei não só no Mussolini, mas no pior aluno da escola. Só tirava notas vermelhas e diariamente me chamavam a atenção por sacanagens que, não sei por qual motivo, acabava fazendo. Era incontrolável. Como uma força oculta. Aliei-me aos piores dos piores elementos da escola. Repeti pela primeira vez.
E foi assim até ao quarto ano primário. O mesmo bando de marginaizinhos. Roubávamos refrigerantes no estoque da cantina e íamos tomar escondido no banheiro, até que um servente dedo-duro surpreendeu-nos tomando Coca-Cola e fazendo competição de arroto. Depois de um pesado sermão da diretora e de um interminável leitura de minha ficha criminal, fui convidado a me retirar daquela escola fedorenta. Fedia mesmo. Eles nunca limpavam os banheiros.
Que maravilha! Pensei que nunca mais pisaria numa sala de aula. Engano meu. Minha mãe, na tentativa de salvar a barra, matriculou-me num colégio da prefeitura, já que o Estado não me queria. Pobre mãezinha. Sem saber, jogou-me no meio do sindicato do crime. Só dava bandido. Com isso, não assistia às aulas, não estudava e mais nada. Aliás, nem o nome da professora eu sabia. Mas, de suas lindas pernas, eu estava ciente. Eram ótimas. Ela também devia gostar das minhas porque até hoje não sei como passei para o ginásio com notas tão brilhantes.
Para quem já estava no mau caminho e ainda não sabia a tabuada de cor, o ginásio era um poço de perdição. Todas aquelas garotas com o seios brotando, os grupinhos de rock nos bailinhos e mais um punhado de prazeres da carne fariam qualquer garoto sucumbir" Se é que garoto sucumbe.
Nem tudo era marmelada. Estávamos em pleno 1969 e qualquer besteira era motivo para ficarmos de mão no peito, cantando o Hino Nacional diante dos professores e diretores, como se fôssemos soldados e eles generais rumo à guerra contra os comunistas. Rock era comunista, Caetano e Gil eram comunistas, minha avó, meu cachorro... Tudo era comunista. Menos Don e Ravel e a "Seleção Brasileira".
O diretor do colégio era um fascistão. Babava de raiva ao ver saia curta ou cabelo comprido. Eu não usava minissaia, mas tinha um bruta cabelão. Bastava isso. Foram dois anos fazendo a mesma primeira série. Ele implicou tanto, mas tanto, que um dia resolvi trocar o quadro-negro por uma mesa de pebolim. Aparecia na escola apenas para ficar do lado de fora do portão, à espera das maravilhas do sexo oposto. Foi o fim da minha atribulada carreira estudantil.
Depois dessa tortuosa maratona, percebi não serem só as bordoadas que tomava dos professores a causa de não saber o bê-a-bá. Confesso ter sido sempre disperso, a ponto de só perceber uma mosca pousada no meu nariz depois de ela já ter feito suas necessidades. Mas, ninguém é perfeito. Quem não tem suas dificuldades? Uns não conseguem ir ao banheiro sem levar uam besteira para ler, outros fingem orgasmo e eu... levo horas numa continha de multiplicar e gaguejo quando me perguntam o que é uma proparoxítona.
O motivo dessas linhas é o fato de um leitor ter enviado uma carta à Folha de S. Paulo, apontando bondosamente um dos meus erros crassos. Fiquei sem ter onde enfiar a cara. O certo seria enfiá-la num bom livro de gramática ou nos seios de uma bela revisora que, na certa, falaria: seios é com "esse" e não com "cê-cedilha".
* ANGELI. Os broncos também amam. Porto Alegre: L&PM, 2007, pp. 6-9.
A homenagem do Carro Gitinho ao Dia do Estudante vem através das palavras de um dos maiores cartunistas brasileiros: Arnaldo Angeli Filho, ou simplesmente Angeli. Premiado por várias vezes como o melhor chargista do Brasil, ele foi o criador da revista Chiclete com Banana, na qual junto com outros cartunistas como Laerte e Glauco, influenciou toda a geração que surgiu na década de 1980 com uma proposta de humor anárquico e urbano. Foi nas páginas de Chiclete com Banana que surgiram alguns de seus personagens mais famosos: Rê Bordosa, Bob Cuspe, os Skrotinhos, Nanico e Meia Oito, Wood & Stock, Bibelô, Mara Tara, entre muitos outros. No texto acima, de cunho autobiográfico, Angeli confessa "que escrever é uma tortura", porém, "o que se lê são impressões ácidas, porém saborosas, de um autor hábil em manipular as palavras, fazer trocadilhos e satirizar acontecimentos políticos, culturais, sociais ou depreciar a si mesmo".


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