Saturday, September 7, 2013

Independência ou Morte!*

O ano era 1972 e o Brasil celebrava os 150 anos enquanto país independente. Eram tempos de regime militar e chegavam às salas de cinema dois filmes que discutiam as figuras de alguns heróis construídos ao longo da nossa história. De um lado, Joaquim Pedro de Andrade lançava Os Inconfidentes, longa-metragem que conta com José Wilker no papel de Tiradentes. Ali, o espectador é convidado a se enviesar pelo lado mais duro do processo sócio-político que culminou no surgimento do Estado independente. Esta seria a consequência de um projeto disputado por jovens idealistas, rapidamente contidos e torturados pelas forças repressoras da Coroa portuguesa. De outro, havia o filme Independência ou Morte!, dirigido por Carlos Coimbra, acompanhamos a vida e os obstáculos enfrentados por D. Pedro I - interpretado por Tarcísio Meira -, herdeiro de um trono europeu e transformado em Imperador de um jovem país americano.
Durante anos, o longa esteve presente em salas de aula e nas contínuas exibições das redes de TV, sempre que chegava o 7 de setembro. E ao nos dispormos a analisa-lo, seria muito simplório desancar a película por suas limitações técnicas e, mais ainda, por suas omissões narrativas. A título de exemplo, basta dizer que em sua uma hora e 47 minutos de duração, Independência ou Morte! não menciona sequer uma vez o fato do Brasil ter mantido a instituição da escravatura. Vemos nas telas, obviamente, figurantes negros realizando o trabalho braçal, carregando pessoas, vendendo frutas e batendo açúcar em tachos. No entanto, nenhum dos personagens utiliza a palavra “escravo” ou “escravidão”, ou mesmo dirige-se aos atores negros. Vale destacar que a manutenção da escravatura foi, ao tempo da Independência, pomo da discórdia e cerne do projeto político vitorioso de Estado independente, sendo discutida amplamente na Assembleia Constituinte e na imprensa da época. Outra ausência é a da própria criação do ente que hoje conhecemos pelo nome Brasil. Não há referência alguma à Confederação do Equador (1824-1825) ou ao fato de ter sido necessário lutar contra tropas portuguesas nas regiões Norte e Nordeste, quando declarada nossa autonomia.
Mais importante ainda, é buscar aquilo que o filme propõe como discurso histórico. Seja a visão revisionista sobre o Sul na Guerra de Secessão Americana (1861-1865), em E o vento levou (1939), seja a empreitada contra o jacobinismo na produção francesa Danton, o processo da Revolução (1983). Independência ou Morte! nos mostra um Brasil nascido naturalmente, a partir da vontade de um só homem, D. Pedro I. Como que caído do céu, o novo Estado não parece possuir qualquer cisão interna, salvo as maledicências espalhadas em torno do Imperador e de D. Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, interpretada por Glória Menezes. É significativo observar, a este respeito, que a única guerra mostrada no filme é a da Cisplatina (1825-1828), interpretada como uma invasão dos “platinos” ao Brasil. “Não posso admitir invasões em terras brasileiras. Vou levá-los a chicote, de volta a seu país” anuncia nosso protagonista, decidindo comandar pessoalmente as tropas que se encarregarão de expulsar os “invasores”.
O Brasil, mais do que uma ideia, teria sido, de acordo com o filme, um fato consumado, sedento de liberdade e necessitado de ordem. Pode mesmo soar um pouco excessivo, mas há no D. Pedro do diretor Carlos Coimbra o que, anos mais tarde, estaria presente no Batman de Christopher Nolan, por exemplo: é “o herói que merecemos, mas não o que queremos”. Abrindo o filme brasileiro com os eventos de 1831, que culminarão em sua renúncia ao trono, D. Pedro resiste em atender às exigências da população do Rio de Janeiro, pois como ele próprio o diz: “Informarei aos amotinados que eu estou pronto a fazer tudo para o povo, nada, porém, pelo povo”. Ao cabo da trama está selado seu papel como o de responsável por imprimir o caráter e a audácia necessários à independência, os quais o “povo”, por conta própria, não teria condições de suprir.

Daí seu tórrido caso de amor com Domitila ser de tamanha relevância. No filme, o Brasil se torna resultado não apenas das ações, mas, sobretudo da personalidade viril de Sua Majestade Imperial, que vai moldando o destino das gentes àquilo que ele sabe ser o mais apropriado para elas e para o país. Uma liderança mais pessoal do que institucional teria garantido a liberdade, o território e mesmo a “democracia” brasileiras. Que importa se D. Pedro fechou a Assembleia Constituinte empossada em 1823, se ele próprio caminhava sem a segurança de tropas pelas ruas da Corte e falava diretamente com seus súditos, como mostrado na película? Este é inclusive um recurso amplamente utilizado na trama, encontrado nas cenas em que o monarca se dirige a uma adega ou ao estábulo, nos quais soldados e civis reúnem-se para discutir os fatos do dia. A eles, Pedro esclarece suas decisões e mede, como a um termômetro, a temperatura causada pelas mesmas. Independência ou Morte!teve de lutar contra a acusação de haver sido instrumento de propaganda do regime militar, mas talvez o tenha sido de um discurso de longuíssima durabilidade histórica, passível de identificação em diversos momentos do desenvolvimento político brasileiro. Trata-se da imagem do Brasil como produto de líderes ilustrados, mais capazes de ver as potencialidades da terra e do povo do que o próprio corpo constitutivo da nação. Não teria interessado apenas ao regime militar disseminar esta opinião, mas ao Estado Novo (1837-1945), à Primeira República, do voto do cabresto, e ao Império, que primeiro retirou aos analfabetos o direito de voto, em 1881. Mais do que instrumento de propaganda, Independência ou Morte! se apresenta hoje como prisma de discussão, em torno do qual pode-se discutir a natureza política do cinema nacional, o sentimento ufanista do Milagre econômico da década de 1970, e acima de tudo, as lutas, os homens e as ideias, desencadeadas na Independência do Brasil.

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