Friday, November 15, 2013

Daguerreótipo #24: Herança do Império*

A estátua equestre do marechal Deodoro, no Centro do Rio de Janeiro, dá um ar triunfal à República de 15 de Novembro. Não é uma cena violenta: o experiente militar não empunha espada nem está em batalha. Imponente, acena para o povo com seu quepe. A base da estátua, verdadeiro colosso, cria uma imagem sólida e perene para o regime. A consolidação da República, entretanto, se deu de outra maneira.
Nossos dois primeiros presidentes foram militares. E nenhum dos dois era republicano, em qualquer sentido que se possa atribuir ao termo. O alagoano Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), veterano da Guerra do Paraguai, monarquista convicto e amigo do imperador, não pensava em derrubar o regime – muito menos em ser presidente. Tratava-se, naquela ocasião, de derrubar o gabinete liberal do visconde de Ouro Preto, durante o contexto da chamada Questão Militar: republicanos que se aproximaram de Deodoro espalharam a falsa notícia de que o ministro ordenara sua prisão. Mas a decisão do líder militar de extinguir a monarquia decorreu da informação de que outro político liberal, o gaúcho Gaspar da Silveira Martins, seu inimigo pessoal (por um típico caso de rabo de saia), assumiria o novo gabinete. Assim, por motivos nada republicanos, decretou-se a República.
O primeiro desafio, portanto, foi fazer com que ela vingasse. A família imperial foi banida (na calada da noite), uma Constituição redigida e promulgada (em 1891) e, formalmente, instaurada uma descentralização administrativa. Apenas formalmente: embora a Constituição assegurasse o federalismo, os governos locais não podiam entrar em contradição com o governo central. A República nasceu, na prática, sob ditadura militar. Que o digam os que esboçaram oposição durante o segundo período presidencial (1891-1894), sob a mão de ferro do marechal Floriano Peixoto, alagoano como Deodoro: censura à imprensa, perseguição política, prisões, execuções.
Campos Sales
Os dois primeiros presidentes civis, Prudente de Moraes (1894-1898) e Campos Sales (1898-1902), eram republicanos da velha estirpe. Seus governos foram momentos de distensão política, embora a força excessiva do Estado contra parcelas da população não tenha deixado de ser usada, como no trágico episódio de Canudos (1896-1897). Ambos integraram o Partido Republicano durante o Império, apoiaram a luta abolicionista e compuseram a Constituinte que produziu a primeira Carta do novo regime. Havia décadas se empenhavam em reformas sociais e políticas para o país. Faziam parte da “Geração de 1870”, um grupo de homens de letras e da política comprometidos com valores à época chamados de “civilizados”: fim da escravidão, aumento da participação política da população, critérios de mérito para o acesso aos principais postos do Estado. Homens como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, André Rebouças e Quintino Bocaiúva, que defendiam a ruptura com a tradição colonial e reivindicavam um governo que acreditavam ser científico, tendo como exemplos a Inglaterra e a França – uma monarquia e uma república.
Prudente de Moraes fez a primeira tentativa séria de instaurar um regime de fato republicano. Para começar, ao contrário dos presidentes anteriores, foi eleito. Comparado com o estilo viril de Floriano, sofria com trocadilhos infames: diziam que era prudente demais. Pressionado, acabou despejando chumbo grosso sobre os seguidores de Antônio Conselheiro.
Campos Sales, paulista como ele, se dedicou à recuperação econômica. Nos anos anteriores, vivera-se uma verdadeira economia de guerra, agravada pela crise do Encilhamento, em parte resultado da polêmica gestão de Rui Barbosa como nosso primeiro ministro da Fazenda republicano.
Nesses primeiros anos do regime, dois outros personagens trabalhavam longe do palco principal: Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919) e Afonso Penna (1847-1909).
Prudente de Moraes
O paulistano Rodrigues Alves era filho de fazendeiro do interior. Estudou no Rio de Janeiro, no Colégio Pedro II, e formou-se em direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, em 1870. Sua vida política começou no ano seguinte, mesmo ano da Lei do Ventre Livre, quando os valores ligados a uma sociedade mais “civilizada” ganhavam espaço nas discussões públicas – incentivadas, inclusive, pelo imperador. Eleito deputado provincial em São Paulo, logo iniciou a carreira no plano nacional, sendo eleito para o cargo de deputado geral (o atual deputado federal) em 1884. Três anos depois, assumiu a presidência de São Paulo (equivalente a governador). O cenário na província era catastrófico: epidemia de varíola, agitação anarquista e fuga em massa de escravos. Rodrigues Alves elegeu um único alvo, e em cinco meses controlou a epidemia.
De volta à Câmara dos Deputados, votou a favor da Lei Áurea em 1888, e logo depois foi feito conselheiro do Império. Mesmo fiel à monarquia, continuou na arena política após o golpe de 1889. No governo de Floriano Peixoto, foi praticamente intimado a assumir o Ministério da Fazenda. Democrata, ficou em situação delicada: como defendia abertamente a realização de eleições presidenciais, passou a ser ignorado pelo Marechal de Ferro nas reuniões ministeriais.
Voltou à pasta da Fazenda sob Prudente de Moraes, em 1894. Ali começou, de fato, uma obra de estruturação do novo regime. Em primeiro lugar, a economia. Costurou acordos internacionais e obteve recursos dentro e fora do país. Além disso, preparou um acordo financeiro que seria posto em prática no governo seguinte – o chamadofunding-loan, que garantiu o pagamento de empréstimos anteriores.
Seu período presidencial se iniciou em 1902, com uma novidade: foi o primeiro presidente a trazer um programa de governo, que incluía manter o rigor nas contas públicas, combater doenças epidêmicas e “civilizar” o Brasil. O primeiro passo foi simples, embora não tenha fincado raízes em nossas práticas políticas: escolheu seus ministros por critério de competência. Entre os colaboradores estavam o barão do Rio Branco, diplomata que tinha verdadeira aversão pela República mas ficaria no cargo de ministro do Exterior até sua morte, em 1912. Outro velho simpatizante do regime deposto, Joaquim Nabuco, foi transformado em nosso primeiro embaixador nos Estados Unidos, função desempenhada também até o fim da vida, em 1910. A atuação dos dois diplomatas consolidou as fronteiras do país e deu voz ao regime republicano na nova ordem mundial.
O Rio de Janeiro, então capital federal, era pouco mais do que uma cidade colonial portuguesa, sem estrutura para abrigar a enorme população, escoar produtos e servir aos negócios de Estado. Nos quatro anos de Rodrigues Alves e nos de seu sucessor, o mineiro Afonso Penna (1906-1909), a cidade virou um canteiro de obras: avenidas foram abertas, casas populares construídas, um porto moderno criado. Para comandar a empreitada foi nomeado prefeito o engenheiro Francisco Pereira Passos, que acabou levando os louros pela remodelação.
A cidade também era o paraíso das epidemias. Contra este mal, Rodrigues Alves chamou o sanitarista Oswaldo Cruz. Sua ação enérgica, associada a demandas reprimidas da população, acabou desencadeando a Revolta da Vacina. Mas os resultados falam por si: em 1902, mil pessoas morreram de varíola. Em 1904, o número de óbitos foi 53.
Rodrigues Alves e Afonso Penna eram explicitamente identificados com o regime imperial, o que causava mal-estar entre os republicanos “históricos”. No caso do paulista, até a aparência remetia à monarquia: usava um antiquado jaquetão preto e cartola, típicos dos tempos do imperador. Retomando um hábito do antigo governante, passava as temporadas de verão em Petrópolis. A atuação de ambos deu à República o que ela não possuía entre nós: uma tradição. A postura conservadora e serena desses homens, em dia com preceitos republicanos de respeito à coisa pública, consolidou a imagem de um regime dotado de instituições. Monarquistas por formação, tiveram papel importante na construção de um aparato estatal republicano, sem apelar para a exceção personalista – diferentemente de muitos dos nossos líderes. Como Getulio Vargas, que inaugurou a bela estátua do marechal Deodoro em 15 de novembro de 1937 – cinco dias depois de instaurada a ditadura do Estado Novo.

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