Saturday, October 12, 2013

Daguerreótipo #21: as festas religiosas de Belém por Henry Walter Bates*

Panorama da Belém em que viveu Henry Walter Bates em pintura de Giuseppe Leone Righini.
Antes de deixar o assunto do Pará, onde residi, como já disse, durante 18 meses, é necessário dar uma noção mais minuciosa de vários pontos relacionados com os costumes do povo e a história natural dos arredores, que até agora apenas de leve mencionei. Reservo a notícia sobre o comércio e progresso do Pará em 1859 para o fim desta narrativa.
Giuseppe Leone (Joseph Léon) Righini (c.1820-1884), Panorama of Belém do Pará, Brazil

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Houve, durante as primeiras semanas de nossa estada, muitas festas religiosas, que ocupavam grande parte do tempo e das preocupações do povo. Eram manifestações esplêndidas, com procissões artisticamente arranjadas, percorrendo as ruas, acompanhadas por milhares de pessoas, paradas militares, fogos de artifício e o clamor de músicas militares se juntavam às pompas das cerimônias religiosas nas igrejas. Para os que tinham assistido a cerimônias semelhantes nos países do Sul da Europa, estas nada tinham de notável, exceto realizarem-se no meio dos esplendores de uma natureza tropical; mas para mim elas eram cheias de novidade, e interessantes sobretudo porque me mostravam muito do que era peculiar na maneira do povo. As festas celebram os aniversários dos santos ou os acontecimentos mais importantes da vida de Cristo. Acrescentaram-se a estes, depois da Independência, muitos dias de gala em correlação com os acontecimentos da história nacional brasileira; mas todos têm um caráter semirreligioso. Os dias santos eram tão numerosos e perturbavam tanto o comércio e a indústria em 1852, que o Governo foi obrigado a reduzi-los, obtendo a necessária permissão de Roma para abolir alguns de menor significação. Muitos, dos que tinham sido conservados, estavam diminuindo de importância depois da introdução das estradas de ferro e dos paquetes, dedicando-se mais o povo ao comércio. Quando aí chegamos, porém, estavam em todo o seu esplendor. As festas realizavam-se obedecendo geralmente ao seguinte cerimonial: anualmente elegia-se, na sacristia da igreja, um diretor geral da festa, ou "juiz" e a ele cabia administrar todos os parafernais concernentes à festa para a qual tinha sido feito — imagem do santo, bandeiras, coroas de prata, etc. Ele encarregava algumas pessoas para que visitassem os paroquianos e colhessem esmolas, para fazer face às despesas. Considerava-se que quanto mais se gastasse em velas de cera, fogos de artifícios, músicas e banquetes, maiores seriam as honras prestadas ao santo. Se o juiz era rico, raramente apelava para as esmolas, celebrando a festa à sua custa, subindo as despesas, às vezes, a várias centenas de libras. Cada festa durava nove dias (uma novena) e em muitos casos serviam-se bebidas ao povo todas as noites. Nas cidades menores há baile duas ou três noites durante a novena e no último dia um grande jantar. O padre, naturalmente, tem que ser pago com muita liberalidade, especialmente pelo sermão feito no dia Santo ou na terminação do festival, pois os sermões são um serviço extraordinário no Brasil.
Há muita diferença nos acessórios destes festivais das cidades e vilas do interior e os da capital; mas pouco se trabalha durante a sua realização, e eles contribuem muito para desmoralizar o povo. Percebe-se logo que a religião é, para a maioria dos paraenses, mais um divertimento que um dever. As ideias da maioria evidentemente não vão além da crença de que todos os festejos são feitos, em cada caso, em honra da imagem de madeira posta no altar da igreja. Os imigrantes portugueses sem educação parecem-me ter noções muito falsas da religião. Muitas vezes viajei em companhia desses brilhantes exemplos da civilização europeia. Geralmente carregam consigo, onde quer que vão, uma pequena imagem de algum santo favorito, e quando há tempestade ou qualquer outro perigo, seu primeiro cuidado é correr para o camarote, tomar a imagem e levá-la aos lábios, enquanto balbuciam uma oração pedindo socorro. Os negros e mulatos são, neste particular, muito parecidos com os portugueses, mas eu acho que eles mostram um sentimento de mais pura devoção; e em conversa, sempre observei que mostravam vistas mais racionais em sua religião do que as classes baixas de portugueses. Quanto aos índios, com exceção das famílias mais civilizadas, morando perto das grandes cidades, não demonstravam nenhum sentimento religioso. Eles tem o seu patrono, São Tomé, e celebram seu aniversário de maneira pouco ortodoxa, pois não são muito ciosos em observar todas as formalidades, mas acham que os festejos têm a mesma importância que as cerimônias da igreja. Em alguns dos festivais as mascaradas ocupam grande parte das festas e os índios realmente brilham nas mesmas. Fazem imitações dos animais selvagens, vestem-se para representar a caipora e outras criaturas fabulosas da floresta, e representam os seus papéis com grande habilidade. Quando chega a festa de São Tomé, todos aqueles, que têm índios ao seu serviço, sabem que seus homens vão embriagar-se. O índio, que é geralmente muito tímido, para pedir cachaça se torna então muito animoso; ele pede um garrafão (duas garrafas e meia) e diz que está se embriagando em honra de São Tomé.

Na cidade do Pará, o governo provincial concorre para o aumento do esplendor dos dias santos. As procissões que percorrem as ruas principais têm, em primeiro lugar, a imagem do santo e as de vários outros, pertencentes à mesma igreja, carregadas nos ombros de respeitáveis cidadãos, que voluntariamente se oferecem: às vezes vemos o nosso vizinho, o carpinteiro ou o açougueiro, gemendo sob o peso. O padre e os coadjutores precedem as imagens, com paramentos bordados e protegidos por magníficas umbrelas, ornamento que não é inútil aqui, pois o calor é muito grande, quando o sol não é obscurecido. De cada lado caminha longa fila de homens, com opas vermelhas, cada qual levando um brandão aceso. Atrás vai um regimento de infantaria com a banda de música, e atrás de tudo a multidão: a gente de cor limpamente vestida e conservando uma conduta circunspecta. As mulheres são sempre em grande número, com os bastos cabelos negros enfeitados de jasmins, orquídeas brancas e outras flores tropicais. Vestem-se com os costumados atavios dos dias de festa, com blusas de gaze e saias de seda preta; no pescoço levam colares de contas de ouro que, nas escravas, são de propriedade das senhoras, que gostam de mostrar assim a riqueza.
À noite, quando as festas se passam nas praças em torno das igrejas dos subúrbios, há realmente muita coisa que admirar. Muita particularidade da terra e vida de seus habitantes pode ser então melhor apreciada. A graciosa igreja branca fica brilhantemente iluminada e a música, que não é de tons muito solenes, repercute através das portas e janelas. Grande número de negrotas bizarramente vestidas ficam no caminho que leva às portas da igreja, com tabuleiros de licores, doces e cigarros, que vendem aos que estão do lado de fora. A pouca distância ouve-se o ruído de dados e roletas armadas ao ar livre. Quando a festa tem lugar em noites de luar a cena é maravilhosa para o recém-chegado. Em torno da praça há grupos de altas palmeiras, e mais longe, acima das casas iluminadas, aparecem as copas das mangueiras, perto das estradas suburbanas, donde chega o eterno bulício da vida dos insetos. O suave luar tropical derrama maravilhoso encantamento sobre o conjunto. Os habitantes estão todos nas ruas, com suas melhores roupas. As classes mais elevadas, que vêm gozar da alegria geral, estão sentadas em cadeiras, à porta de casas amigas. Não há uma ruidosa jovialidade mas uma alegria sossegada, que parece sentida por todos, com delicadas regras de cortesia entre todas as classes e cores. Vi um coronel em grande gala, do palácio do Presidente, dirigir-se a um mulato e delicadamente pedir-lhe fogo para acender o charuto. Quando termina a ladainha, tangem os sinos da igreja e uma girândola de foguetes sobe ao ar, tocam as bandas de música e os pares de pessoas de cor começam as danças. As dez horas toca-se o Hino Nacional e todos se dispersam e sossegadamente voltam para casa.
(...) A festa maior e mais imponente era a que se realizava em honra de Nossa Senhora de Nazaré, e que é, segundo penso, privativa do Pará. Como já disse, cai no quarto crescente, em meados da estação seca, isto é, em outubro ou novembro, e dura, como as outras, nove dias. No primeiro dia tem lugar uma enorme procissão, partindo da catedral, para onde a santa foi trazida alguns dias antes, e terminando na capela ou ermida (como chamam), da santa, em Nazaré, a uma distância de mais de duas milhas. Toda a população vem para a rua nessa ocasião. Todos os soldados, tanto de linha, como da Guarda Nacional, tomam parte na procissão, cada batalhão acompanhado por sua banda de música. Acompanham-na também as autoridades civis, com o presidente à frente, bem como as pessoas gradas, inclusive muitos residentes estrangeiros. O bote dos náufragos portugueses é transportado, atrás da santa, nos ombros de oficiais de marinha e marinheiros, e em seguida vêm os outros símbolos dos milagres realizados por Nossa Senhora. A procissão tem início logo que o sol começa a declinar, isto é, mais ou menos às quatro e meia da tarde. Quando se deposita a imagem na capela, considera-se a festa como inaugurada, e a aldeia é, todas as noites, o ponto de reunião da população que procura divertir-se, sendo a parte festiva do programa precedida, naturalmente, por um serviço religioso na capela. O aspecto da praça é então o de uma feira, sem o bom humor e a galhofa de festas semelhantes na Inglaterra, mas também sem a sua algazarra e grosseria. Preparam-se grandes salas para vistas panorâmicas e outros divertimentos onde o público tem entrada grátis. Há todas as noites grande queima de fogos de artifício, tudo obedecendo a um programa publicado da festa.

*In: BATES, Henry Walter. Um naturalista no Rio Amazonas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944, pp. 121-127.

Henry Walter Bates nasceu em Leicester, a 8 de fevereiro de 1825. Ansiando pertencer ao seleto grupo da comunidade científica, mesmo impossibilitado de ter formação acadêmica e com recursos limitados, em 1844 associou-se ao também naturalista Alfred Russel Wallace (1823-1913), para, juntos, excursionarem pelos rios Tocantins e Amazonas, em busca de informações sobre a origem das espécies. Durante a expedição, que durou cerca de onze anos, Bates se destacou por ser metódico e dedicado, recolhendo uma coleção de 14.712 espécies, sendo 8.000 desconhecidas. Após retornar à Inglaterra em 1859, teve seu trabalho reconhecido o que lhe permitiu atuar como secretário-assistente da Sociedade Real de Geografia de Londres, colaborador da Linnean Society e da Entomological Society. Bates tornou-se um reconhecido entomólogo, elogiado inclusive por Charles Darwin (1809-1822), que prefaciou a edição original de The Naturalist on the River Amazons, a Record of Adventures, Habits of Animals, Sketches of Brazilian and Indian Life (1863). Darwin tinha motivos para tal, pois a coleção contribuiu decisivamente para o progresso de suas teorias acerca da evolução das espécies. Bates deixou ainda uma importante descrição dos usos e costumes dos locais por onde passou, especialmente Belém, onde residiu por um ano e meio. Ele faleceu em Londres, a 16 de fevereiro de 1892.

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