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Avenida São Jerônimo. Antônio Parreiras, óleo sobre tela, 64,4 x 54cm, 1905. Acervo: Museu de Arte de Belém. |
BEMBEBELÉM
Viva Belém!
ele saudou com alegria, a
cidade pomar
(Obrigou a polícia a classificar um tipo novo de delinquente
O apedrejador de mangueiras).
Que beleza, as ruas e avenidas bordadas pelas frondes enormes das mangueiras que dão sombra e frutos ao passeante!
A rua democratiza o pomar em
Belém do Pará onde as avenidas se chamam Estradas
Estrada de São Jerônimo (1)
Estrada de Nazaré
Onde a banal Avenida Marechal Deodoro da Fonseca
de todas as cidade do Brasil
Se chama liricamente
Brasileiramente
Estrada de Generalíssimo Deodoro!
O poeta Manuel Bandeira identificou-se com a "cidade-pomar", como se ela fosse um Recife de sua Evocação:
Recife bom, Recife brasileiro como a casa do meu avô.
Está no arbítrio de qualquer um desfrutar essa paisagem, esses frutos, e ver essas Estradas de cúpulas verdes. É só sair à rua, de preferência pelas manhãs, cedinho. Passai pelo Largo da Pólvora (Praça da República, mas o povo obedece à tradição de um depósito de pólvora que aí existiu no século dezoito), onde, de um lado e de outro - por todos os lados, digo melhor -, o céu está encoberto de verde.
Segui pela Avenida Nazaré - a Estrada de Nazaré para muitos belemenses - e continuareis a fruir uma agradável sensação de frescor e de perfumes de planta. É assim na Avenida São Jerônimo, na Avenida Generalíssimo Deodoro, nas ruas transversais à Nazaré, que em Belém, não sei porquê, se chamam Travessas. É assim na Praça Batista Campos e em muitas ruas de bairro. No Largo do Palácio. Na Avenida Independência (2). Na Avenida José Bonifácio. Na Avenida Braz de Aguiar, que já se chamou São Braz. Túneis de verdura, justificando a "cidade-pomar" do poeta.
As "Estradas" eram os antigos caminhos de mato, as estradas de penetração. Descreveu Daniel Kidder, pastor protestante, que viu Belém em 1841, "as bem traçadas ruas, nas apenas uma exígua vereda serpeia por entre o matagal que os cobre". O norte-americano, perambulando nesses caminhos de mato, achava que "o frescor das sombras silenciosas é sempre convidativo".
Com o desenvolvimento urbano as "estradas" perderam o mato e tomaram o nome de Avenidas. Estrada de Nazaré, Estrada do Paul d'Água, Estrada de São José, Estrada de Bragança, Estrada do Utinga, Estrada das Mongubeiras, Estrada do Arsenal, Estrada da Olaria, Estrada da Constituição. Mesmo depois de ganharem nova classificação, várias continuaram "Estradas" no falar do povo. As que mudaram de nome conseguiram impor-se, paulatinamente, como avenidas. As que por milagre escaparam à sanha mudadora (que sabor a gente dizer Estrada de Nazaré!) trouxeram até nós o hábito de referi-las pelo nome que evoca um estágio de evolução de Belém.
Com os anos e os atos nem sempre louváveis dos governantes (lembro-me do poeta Manuel Bandeira em sue poema Evocação do Recife: "Rua da União.../ Como eram lindos os nomes de minha infância/ Rua do Sol/ Tenho medo que hoje se chame rua Dr. Fulano de Tal)", aqueles logradouros mudaram de nome. Não, não foi só o designativo de "Estrada": foram-se, também, os legítimos nomes, cheios de ressonância poética, portadores de experiência social, testemunhas das transformações urbanas, das vidas que pela cidade passaram.
Paul d'Água tomou, é certo, nome mais expressivo: São Jerônimo, em homenagem a um dos maiores administradores que teve o Pará (1848): o Presidente Jerônimo Francisco Coelho. Este cidadão foi um abnegado, como administrador e como criatura humana. Basta lembrar sua atuação nos dias terríveis da epidemia de febre amarela que flagelou a cidade no ano de 1850. Ele acudia pessoalmente aos enfermos, dispensando todos os socorros possíveis na Provìncia.
Na administração pública Jerônimo Coelho se notabilizou sobretudo pelo seu gosto urbanístico: "quando cheguei a esta Província somente havia uma estrada que comunicava o Largo da Pólvora com o dito arraial de Nazaré, cuja praça da parte de Leste da Igreja, estava sem mato". A estrada a que ele se refere é a atual Avenida de Nazaré.
O sítio "plano, elevado, enxuto e sadio era próprio para nele se edificarem quintas, e para todo o tempo estender-se a cidade, para o que oferece excelentes proporções". Hoje é o elegante bairro de Nazaré e de São Jerônimo. Mas o grande administrador só se contentou quando ele mesmo foi praticar urbanismo: "Nas horas em que podia desembaraçar-me do serviço da administração, lancei mão dos instrumentos topográficos e pessoalmente levantei a planta do mesmo arraial", retalhando-o "em ruas, travessas, na maior parte das quais fiz plantar linhas de arvoredos, em número de 1000 árvores, aproximadamente".
O Presidente Jerônimo Coelho antecipou-se à Antônio Lemos, no gosto de servir a cidade, com arte, amor e compreensão ecológica.
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Postal do início do século XX mostrando o cruzamento das avenidas Governador José Malcher e Generalíssimo Deodoro. |
E vede, leitor, o lirismo dos antepassados belemenses: não o prosaico de uma Avenida Presidente Jerônimo Coelho, mas, seraficamente, "São Jerônimo" - loas ao Santo e ao homem.
(A Igreja Católica venera em São Jerônimo "o maior doutor que o Céu lhe deu para a interpretação da Sagrada Escritura", conforme as palavras do Papa Bento XV, e, também, celebra a sua capacidade de trabalho, o que identifica ao Jerônimo, Presidente da Província).
São Jerônimo incorporou-se à geografia urbana. Larga e formosa avenida, disputa à de Nazaré a preferência e o bom-gosto do morador belemense. Avenidas irmãs, na beleza e no traçado, que ninguém se lembre de mudar o seu nome! Seria crime de lesa-cidade e uma injustiça (quanto a São Jerônimo) a um dos maiores administradores do Pará, e um desapreço ao Santo "Pai e Doutor da Igreja Latina!".
E se estou entrando nesse assunto, desejo falar ao turista sobre certos designativos de vias públicas lamentavelmente desaparecidos da cidade. Rua do Espírito Santo (Dr. Assis), rua do Poço do Bispo (Dr. Morais), rua dos Cavaleiros (Dr. Malcher), rua Água das Flores (Travessa de Cintra), rua Cruz das Almas (Arcipreste Manuel Teodoro), rua do Rosário (Aristides Lobo), rua das Flores (Lauro Sodré), rua dos Mártires (28 de Setembro), rua São João (João Diogo), rua São Mateus (Padre Eutíquio), Estrada São José (Avenida 16 de Novembro).
A lista seria longa. Mas os nomes que enunciei já permitem um confronto. Mas os nomes que enunciei já permitem um confronto. Quais os mais bonitos? Quais os mais espontâneos, mais saborosamente belemenses, porque brotaram da sensibilidade do povo, marcados pela alma dos tempos?
Nazaré foi o primeiro caminho aberto do bairro da Campina à ermida de Nossa Senhora de Nazaré, local onde hoje está a Basílica da Santa. São Jerônimo conduzia ao paul d'água, fonte de abastecimento da população até por volta de 1890. Não vos disse, acima, que esses nomes antigos são ricos de experiência belemense?
Um filho ilustre de Belém, diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras, Osvaldo Orico, recorda em seu livro de memórias o prazer que representava para si, menino de oito anos, morador no bairro do Reduto, ver-se perambular nessas Avenidas: "constituía uma festa para os meus olhos desembocar em São Jerônimo ou Nazaré, que eram logradouros aristocráticos de Belém, povoados de palacetes e mansões. Estendendo a vista por aquelas artérias, tinha-se a sensação de haver entrado em um túnel vegetal, com as mangueiras cruzando as copas de lado a lado, numa explosão de seiva e num capricho de urbanismo".
E falando em "capricho de urbanismo" é hora de dizer que o requinte florístico de Belém se deve a um homem de extremo bom-gosto, e administrador de alto quilate: o Intendente Antônio José de Lemos. Foi ele que encheu Belém de mangueiras, para coar a luz equatorial, amaciar-lhe a crueza. Substituiu pela nobre espécie oriental os taperebazeiros, as mongubeiras, magnólias do Japão e ponciamas, árvores menos generosas no que podiam dar de sombra, de beleza e de apetitoso aos frutos.
Que safra alegre e farta oferecem democraticamente as mangueiras! É só juntar o fruto da rua e comê-lo. Ninguém poderá esquecer o barulho das mangas ao cair no chão durante as horas mais calmas do dia e no silêncio das madrugadas. Plaf... Plaf... Plaf... Música de cidade-pomar...
Os meninos, durante o dia, sobretudo nas horas de ventania forte, prenúncio de temporal, são atraídos pelo som familiar e correm a disputar os frutos. Até uma quadrinha surgiu para marcar um instante profundamente belemense:
A chuva está chovendo
O vento está ventando
As mangas estão caindo
Os meninos estão se juntando
Há, nessa concorrência, o fato curioso da alegação do menino que se julga o legítimo proprietário da manga despencada no espaço fronteiro à sua casa. Os outros meninos respeitam-na.
Mas a garotada não se contenta em esperar que a natureza ponha ao seu alcance os doces pomos. Idealizou, então, o estratagema do "bole" (3) uma linha bem longa em cuja extremidade pende um caco de pedra. Lançado no espaço, em direção às pencas de manga, o "bole" deve-se enrolar nos caules da fruta. Depois, é iniciada a operação de puxar a linha, como quem empina "papagaio", até conseguir desprender da árvore a presa cobiçável.
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A Governador José Malcher hoje. Fotografia de José Aragão. In: http://www.flickr.com/photos/aragao/2369588761/ |
Quantas vezes a gente encontra um transeunte "chupando" manga oferecida naquele instante pela generosidade da natureza! Chupar é bem o termo porque isto exige a abertura de pequeno orifício numa das extremidades da fruta, por onde a pessoa sorve o delicioso néctar, ao mesmo tempo que comprime as suas massas carnudas. "Chupar" manga é uma usança que se incorporou ao modo de ser do belememse.
O escritor Osvaldo Orico, rememorando uma cena ocorrida na meninice, destaca a "feira alegre dos pobres" - as mangueiras pejadas de frutos - que lhe fez nascer, um dia, o desejo de se regalar com uma penca de mangas. Aconteceu que a pedrada errou o alvo e foi alcançar os vidros de uma casa de moradia,a acidente comum nas "molecagens" de rua (no conceito dos prejudicados). Daí a repressão policial, em certo tempo, contra os apedrejadores de mangueiras, da evocação de Manuel Bandeira.
O menino Orico fugiu da repreensão certa. Logo mais, se aproveitou de uma dádiva natural: a ventania que lhe pôs ao alcance das mãos e do estômago, aquilo que não conseguira por esforço próprio: "não se se nessa tarde falei de uma região da terra em que as árvores das ruas costumavam revigorar os estômagos das crianças com a seiva dourada de seus frutos, oportunos e providenciais como um seio de mãe".
Não tem faltado gente que deseje "limpar" a cidade de suas queridas mangueiras. Que profanação! Um prefeito, anos atrás, ensaiou a retirada das árvores, O povo chamou-o de "lenhador". A experiência deu em fracasso por causa da reação popular. Que o Curupira (divindade amazônica protetora das árvores - quem derruba uma é punida por ele) livre de "lenhadores" a cidade de Belém.
Notas:
(1) Infelizmente alguém se lembrou de trocar o nome da Avenida São Jerônimo, que hoje se chama Avenida Governador José Malcher.
(2) A Avenida Independência hoje é chamada de Avenida Governador Magalhães Barata.
(3) O "bole", pelo menos na minha infância, era chamado de "bode".
* In: TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belém do Grão Pará. 3 ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, pp. 127-135.
Leandro Góes Tocantins nasceu em Belém em 1928, e com apenas um ano de idade sua família se mudou para um seringal em um afluente do rio Juruá chamado Tarauacá. Foi aqui que Tocantins recolheu suas primeiras impressões acerca da região e que mais tarde estariam presentes em vários de seus livros. Aos 11 anos de idade, retornou a Belém para estudar de onde, mais tarde, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou primeiro em Direito e depois em Jornalismo. A partir daí estabeleceu uma sólida carreira dentro do funcionalismo público: foi adido cultural na embaixada brasileira de Lisboa, diretor cultural da Embrafilme e diretor da Embratur entre outros cargos. Entre suas maiores obras estão o clássico O rio comanda a vida (1952) que discute a importância e influência dos rios na vida dos habitantes da Amazônia, e A Formação Histórica do Acre (1961), no qual relata, literariamente, a história de seu estado adotivo. Leandro Tocantins sempre se considerou um "paraense-acreano". Em 1963, foi lançado Santa Maria de Belém do Grão Pará, um "memorial lírico, histórico, turístico, sentimental" dedicado à cidade onde nasceu, que o autor conhecia "profundamente [e pela qual] bate intacta em seu coração". Leandro Tocantins morreu no Rio de Janeiro, a 29 de junho de 2004.
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