Friday, September 7, 2012

Daguerreótipo #15: "O Grito do Ipiranga"

Pedro Américo. O Grito do Ipiranga. 1888, Óleo sobre tela, 415 x 760 cm, Museu Paulista, São Paulo.
A pintura "O Grito do Ipiranga", mais conhecida como "Independência ou Morte!", obra do pintor paraibano Pedro Américo (1843-1905) realizada entre 1886 e 1888, transformou-se na representação mais conhecida da Independência do Brasil. Reproduzida quase à exaustão, inclusive em livros didáticos, ela chegou a servir de inspiração para o filme do mesmo título de 1972 dirigido por Carlos Coimbra (1925-2007) e com Tarcísio Meira como D. Pedro e Gloria Menezes como a Marquesa de Santos (quando era criança, esse filme passava todo 7 de Setembro e eu parava tudo o que estava fazendo para assisti-lo). Por isso, o quadro é a primeira imagem que vem à cabeça da maioria dos brasileiros toda vez que a data é comemorada. Concluindo, ele é quase a uma fotografia do acontecimento.
Com o passar do tempo, hoje se sabe que ele não corresponde exatamente o que aconteceu naquele 7 de setembro de 1822. Publicado no jornal A Folha de São Paulo em 1999, o artigo a seguir, intitulado "Esplendores de Imortalidade", de autoria do cientista político José Murilo de Carvalho, é bastante conhecido, mas vou reproduzi-lo pois ele nos dá um panorama interessante sobre a mais famosa tela histórica brasileira e, consequentemente, sobre a mais importante data nacional brasileira: 

"'Um pintor de história deve restaurar com a linguagem da arte um acontecimento que não presenciou e que 'todos desejam contemplar revestido dos esplendores da imortalidade'. Assim escreveu Pedro Américo em texto explicativo sobre o quadro conhecido como 'O Grito do Ipiranga', completado em Florença em 1888 por encomenda da comissão de construção do monumento do Ipiranga. A tela tornou-se ícone nacional, representação maior da Independência. O texto descreve o grande cuidado do pintor em reproduzir de maneira exata o acontecimento. Leu, pesquisou, entrevistou testemunhas oculares, visitou o local. No entanto, por razões estéticas, teria sido obrigado a fazer mudanças nas personagens e no cenário a fim de produzir os esplendores de imortalidade.
De início, dom Pedro não podia montar a besta gateada de que falam as testemunhas. O pedestre animal, apesar de ter arcado com o peso imperial, teve o desgosto de se ver substituído no quadro pela nobreza de um cavalo. Com maior razão, prossegue o pintor, o augusto moço não podia ser representado com os traços fisionômicos de quem sofria as incômodas cólicas de uma diarréia. Como se sabe, a diarréia fora o motivo da parada da comitiva às margens do Ipiranga (um irreverente poderia acusar dom Pedro de ter iniciado a poluição do desditoso riacho).
Ocasião de gala, o uniforme da guarda de honra também foi alterado. A ocasião merecia traje de gala, em vez do uniforme 'pequeno'. Finalmente, o Ipiranga teve que ser desviado de seu curso para facilitar a composição do quadro. O carreiro com seu carro de bois, segundo o pintor, entrou em cena para dar cor local, retratar a placidez usual daquelas paragens, perturbada pelo acontecimento. Não aceitou a sugestão de obter o mesmo efeito com uma tropa de asnos, bicho que definitivamente desprezava. O que não impediu que seu carreiro fosse mais tarde objeto da mordacidade de Eduardo Prado, que nele viu o símbolo do povo brasileiro assistindo espantado à cena insólita.
 
Ernest Meissonier. 1807, Friedland. 1875, óleo sobre tela, 140 x 242 cm, Metropolitan Museum of Art, Nova York.
O que Pedro Américo não conta é que seu quadro lembrava muito a tela '1807, Friedland', de Ernest Meissonier, talvez para não reavivar acusação anterior de ter plagiado a 'Batalha de Montebelo', de Appiani, em sua 'Batalha de Avaí'. O quadro de Meissonier, pintado em 1875, refere-se à batalha de Friedland, vencida por Napoleão em 1807.
A semelhança na composição dos dois quadros é muito grande. Em ambos, a figura central, d. Pedro e Napoleão, é colocada sobre uma elevação do terreno, cercada por seus estados-maiores. Ao seu redor, em movimento circular, soldados entusiasmados saúdam com as espadas desembainhadas. A dinâmica das figuras nos dois quadros aponta para o centro ocupado pelo príncipe e pelo imperador. Sobressai em primeiro plano o movimento dos cavalos, cujo desenho exato era obsessão de Meissonier. Nos dois casos, finalmente, nenhuma ambiguidade quanto ao objetivo dos pintores: a exaltação do herói guerreiro.

 
François-René Moureaux. A Proclamação da Independência. 1844, óleo sobre tela, 244 x 383 cm, Museu Imperial, Petrópolis.
Pedro Américo também não menciona em seu texto outro quadro sobre o mesmo tema da Independência, executado em 1844, a pedido do Senado imperial, por François-René Moreaux, um pintor francês então residente no Rio. Não se sabe se conhecia o quadro de Moreaux, sem dúvida inferior ao seu em qualidade. O certo é que as duas telas são antitéticas, como observou Maria de Lourdes V. Lyra. Moreaux altera mais radicalmente as figuras e o cenário. D. Pedro monta um cavalo, mas ergue o chapéu em vez da espada. Não está em posição mais alta, cercado de soldados, mas no meio de gente do povo, de mulheres e de crianças descalças que ocupam a frente da cena. O clima é de alegria festiva e não de exaltação patriótica.
Nenhum dos dois pintores representou com exatidão os fatos, como, aliás, querendo ou não o artista, sempre acontece. Mas a distorção tinha finalidades distintas. Pedro Américo, atendendo à finalidade da encomenda, buscou construir a imagem de um herói guerreiro, criador de uma nação. Moreaux, talvez pensando nas revoluções de sua pátria, pintou um líder popular, instrumento de um movimento coletivo que fez a Independência. Duas maneiras de contar a história, duas maneiras de construir a memória nacional. Ironicamente, Pedro Américo, mais fiel do que Moreaux ao que acontecera à margem do Ipiranga, estava mais distante do que o francês do que foi o processo de Independência.
Embora não tivesse havido no Brasil prolongada guerra de independência como na América espanhola, houve sangue derramado na Bahia, Pará e Maranhão. No Rio de Janeiro, foi intensa a participação popular, manifestada sobretudo no episódio do Fico, quando um abaixo-assinado com 8.000 nomes foi entregue a dom Pedro solicitando que permanecesse no país. Para uma cidade de uns 150 mil habitantes, em sua maioria analfabetos, era um número extraordinário.
Desde 1820, data da revolta do Porto, a agitação na capital era constante. Travara-se o que o padre Perereca chamou de guerra literária: centenas de panfletos políticos foram escritos debatendo com paixão os temas do dia: volta de dom João, permanência de dom Pedro, Independência, Monarquia, Constituição. A aclamação de dom Pedro em 12 de outubro, ao voltar de São Paulo, e a sagração a 1º de dezembro contaram com a presença entusiástica de milhares de pessoas no campo de Santana (praça da República) e no largo do Paço (praça 15). O povo do Rio não foi o carreiro de Pedro Américo, esteve mais próximo do povo de Moreaux.
Duas histórias
D. Pedro ficou no Brasil por decisão e a pedido dos brasileiros, povo e elite. Moreaux alterou o grito do Ipiranga para contar essa história. Pedro Américo o alterou para contar outra história. Todos os brasileiros conhecem o quadro de Pedro Américo, guardado no Museu do Ipiranga. Só os especialistas conhecem o quadro de Moreaux, hoje no Museu Imperial de Petrópolis.
Parece útil falar dessas duas maneiras de contar a história do país nestes dias de celebrações, de construção de marcos e monumentos em busca dos esplendores de falsa imortalidade".

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José Murilo de Carvalho nasceu a 8 de setembro de 1939 na cidade de Piedade do Rio Grande, em Minas Gerais. Formou-se em bacharel em Sociologia e Política pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1965, fazendo suas pós-graduações (especialização, mestrado e doutorado) em instituições norte-americanas e inglesas. Dono de uma grande produção bibliográfica, José Murilo de Carvalho se destacou por buscar "interpretar a dinâmica conflituosa do imaginário político-social lançando mão, além das fontes tradicionais, de um vasto material cultural, como imagens plásticas, música, literatura e charges". Como historiador, suas obras mais importantes talvez sejam Os Bestializados (1987) no qual analisa os primeiros anos da República brasileira na capital do país, o Rio de Janeiro, A Formação das Almas (1990), na qual aborda o imaginário que cerca esta mesma República e Construção da Ordem/O Teatro das Sombras (2ª ed., 2003), no qual analisa a mentalidade das elites políticas do Brasil imperial.  José Murilo de Carvalho é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2004.

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