Noites de São João, banhos-de-felicidade e cheiro-de-papel*
"João, João, João. O nome do Santo que batizou o Salvador. Os milhares de Joões em Belém do Grão-Pará. Joões pelo prestígio popular do Profeta. (Vê-se, por toda a parte, imagens e gravuras de São João, com a sua túnica de lã de camelo e cinto de couro, fazendo concorrência a Santo Antônio nos assuntos de amor). João, João, João é o querido Santo, é o nome preferido na vida beata e sentimental da cidade. Santo Antônio e São Pedro seguem de perto o Batista no coração do povo.
Ocorre-me um fato que guardo na memória. Eu me encontrava em Belém no momento em que o Sacro Colégio de Cardeais elegia o sucessor de Pio XII. Tomei conhecimento da escolha do novo chefe da Cristandade pelo rádio. Quiz transmiti-la a pessoa de minha amizade. Disco o telefone e atende minha amiga - senhora belemense de boa cepa - que recebe a novidade com manifestações alviçareiras: 'João! Que nome feliz ele escolheu! São João Batista está regojizando no Céu!'
A devoção joanina, generalizada na Europa ocidental, é uma herança portuguesa legada aos belemenses. Os lusitanos, em seu país, chegaram até a construir novo calendário no dia 24 de junho: nos antigo prazos do velho Portugal o ano era sempre contado de São João a São João. Foi preciso o Alvará Régio de 1º de julho de 1774 vir taxá-lo de ano irregular.
João era nome que Península Ibérica se emprestava sentido mágico e amoroso, ao ponto das constituições sinodais do Bispado de Lamego proibirem a celebração de missa 'que há de ser dita por clérigo que se chame João'.
As quadrinhas populares lusas são irreverentes quando tratam do Santo. Numa delas o sono de São João adquire sentido erótico:
São João adomeceu
Nas escadas do colégio
Deram as moças com ele
São João tem privilégio
Esta outra, do cancioneiro popular do século dezoito, trata do Santo de casamenteiro:
São João, as moças hoje
Vos pedem que as caseis
Dai noivos para todas
Vede vós o que fazeis
Trouxeram os portugueses, com todo o mimo, a devoção ao filho de Elizabeth, as crendices e superstições a ele ligadas. Para Santa Maria de Belém. E se nota uma coisa interessante, até certo ponto rara no meio social amazônico: quase nenhum sincretismo ocorreu nas práticas e rituais das crendices joaninas.
O índio não influiu no caráter mítico e cultual das festividades de São João. O seu banho de rio, por exemplo, praticado com tanta frequência, é simplesmente um banho de limpeza e para refrescar o corpo do calor tropical. O que se pode dizer é que o banho-de-cheiro do paraense foi buscar ingredientes em maloca de índio: aromas da selva amazônica.
O banho de São João teve origem no costume português do banho-de-rio obrigatório no dia do Santo Precursor. Praxe que no século quatorze já era comum na Europa ocidental. Petrarca presenciou na cidade de Colônia uma estranha solenidade. Véspera de São João, o povo reunido à beira do Reno ia emergir o corpo na água, murmurando orações e fazendo pedidos ao Santo.
O ato ainda se pratica no Pará. Como na cidade de Belém é difícil para a maioria da população fazer abuções no tio, toma-se o banho-de-cheiro, nada mais nada menos do que uma forma simbólica de ablução. E ablução perfumada.
No interior do Estado há, sim, o ritual completo. Descreve-o o escritor belemense Jacques Flores, participante dos festejos joaninos na cidade de Cametá. à meia noite do dia 23 os convivas do deputado federal Nelson Parijós (ele tinha vindo do Rio especialmente para a festa de São João) rodeavam a fogueira, todos com a sua cuia-pitanga de cheiro, recitando três vezes:
São João, São João, São João
Santo cheio de amor,
Em torno desta fogueira
Nós todos com todo o fervor
Te pedimos que...
(aqui cada um solicitava a sua graça)
Nelson Parijós é chefão em Cametá. A noite de São João que ele promove (ou pelo menos promovia até alguns anos atrás) é festança das boas. Povo muito rodeia a fogueira e se dirige, depois do recitativo, em trajes de banho, para a beira do rio Tocantins. Nelson Parijós à frente.
É melhor ouvir seu convidado Jacques Flores: 'Após uns três ou mais mergulhos e outras tantas braçadas, o cidadão derrama, então, cabeça abaixo, o cheiro de cuia-pitanga, e subindo a escada da ponte retorna à casa do anfitrião. Um empregado recolhe as cuias, enquanto outro distribui toalhas'.
A sorte, a alegria, a prosperidade, a saúde, o dinheiro, dominam o pensamento de todo o mundo. Expulsos a caipora, o azar, a panemice. E os convidados vão aos comes e bebes: canjica, mugunzá, pamonha, pé-de-moleque, bolo de macaxera, beijus, bolinhos de milho, pato-no-tucupi, maniçoba, refrescos de frutas típicas.
Em Belém, exceto a ablução (que pode ocorrer na beira do Guamá, como fato isolado) os festejos se realizam dentro dos mesmos temas de fé e alegria. Bailes caipiras nos clubes, fogueiras nas ruas dos arrebaldes, reuniões familiares com danças de quadrilhas. Quando a casa é de quintal a festa se faz ao ar livre.
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Vendedora de Cheiro. Antonieta dos Santos Feio, 1947. Acervo MABE. |
O banho-de-cheiro (deu título a livro da belemense Eneida) é o resumo de todos os anseios de felicidade. Quase ninguém deixa de fazer escorrer pelo corpo a água de perfumes bons, preparada em casa ou adquirida nos mercados e casas do ramo.
Recorro ao testemunho de Eneida, figura tão cariocacamente integrada na paisagem do Rio, mas não tanto como na vida de sua terra e de seu povo. Eneida que não dispensa perfume de jasmim-bogari ou de hervas arrancadas do mato: 'Até hoje nunca me faltou o banho-de-cheiro, o banho da felicidade que vou buscar, anualmente, na minha terra. Enormes garrafas trazem, pelos ares, as águas cheirosas da minha gente'.
Tenho uma fórmula para preparar banho-de-cheiro. Receita de família. Se o turista desejar conhecer a misteriosa alquimia então leia:
Juntar trevo-cumaru, japana-branca, pataqueira, mão-de-onça, catinga-de-mulata, chama, bergamota, mangerona, pluma, vindicá, orisa, cipó-catinga, casca-de-cedro, boiuçu, canela, numa bacia com água. Levá-la ao sol, diariamente, durante uns cinco dias. Nunca ao fogo. Coa-se a infusão em pano bem fino e se engarrafa o banho-de-cheiro. Deve ser usado nas vésperas de Santo Antônio, São João e São Pedro. Somente depois de lavar o corpo com água pura.
A cachaça-cheirosa, ou 'garrafada', é de uso permanente. Dizem que possui os mesmos dons miraculosos do banho-de-cheiro. Pelo menos 'fecha o corpo' para as coisas ruins e 'abre os caminhos'. É um perfume ameno e agradável, bastante apreciado pelas mulheres, que se aplica ao corpo depois do banho, fazendo as vezes Água de Colônia, ou então se derrama na tina de água para o banho-de-cuia. Quem quiser prepará-la, siga este formulário:
Numa garrafa com aguardente ou cachaça forte, colocar patichuli, páu d'angola, madeira-do-Pará, casca-preciosa, priprioca, louro, corimbó, cipó-catinga, pau-rosa. Esta infusão deve ficar durante trinta dias exposta ao sol e ao sereno. Garrafa bem arrolhada. Servir-se de cachaça-cheirosa sem coá-la.
Antigamente os banhos-de-cheiros eram vendidos nas ruas. E havia os pregoeiros anunciando aos quatro ventos:
Cheiro - cheiroso!
Cheiro - cheiroso!
É do bom e do melhor
Pro banho de São João!
Hoje os pregões estão escasseando. Pequenas indústrias de banho-de-cheiro surgem aqui e ali, com embalagem própria, rótulo, etc., para serem vendidos convencionalmente nas casas especializadas do ramo, que dia a dia destroem o prestígio dos raros pregoeiros. Mas isto não impede que os moleques façam a sua irreverência:
Cheiro - cheiroso
Prá lavar o catingoso"
* In: TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belém do Grão Pará. 3 ed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, pp. 289-294.
Leandro Góes Tocantins nasceu em Belém em 1928, e com apenas um ano de idade sua família se mudou para um seringal em um afluente do rio Juruá chamado Tarauacá. Foi aqui que Tocantins recolheu suas primeiras impressões acerca da região e que mais tarde estariam presentes em vários de seus livros. Aos 11 anos de idade, retornou a Belém para estudar de onde, mais tarde, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou primeiro em Direito e depois em Jornalismo. A partir daí estabeleceu uma sólida carreira dentro do funcionalismo público: foi adido cultural na embaixada brasileira de Lisboa, diretor cultural da Embrafilme e diretor da Embratur entre outros cargos. Entre suas maiores obras estão o clássico O rio comanda a vida (1952) que discute a importância e influência dos rios na vida dos habitantes da Amazônia, e A Formação Histórica do Acre (1961), no qual relata, literariamente, a história de seu estado adotivo. Leandro Tocantins sempre se considerou um "paraense-acreano". Em 1963, foi lançado Santa Maria de Belém do Grão Pará, um "memorial lírico, histórico, turístico, sentimental" dedicado à cidade onde nasceu, que o autor conhecia "profundamente [e pela qual] bate intacta em seu coração". Leandro Tocantins morreu no Rio de Janeiro, a 29 de junho de 2004.
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